sábado, 11 de maio de 2024

Quando vejo um poema muito poderoso, muito vigoroso, que faz meu corpo vibrar por dentro e me devolve a vida, não posso deixar que só meus olhos passeiem por esse poema, preciso trazer aquelas palavras à boca, por isso digo o poema para o mundo, por isso escrevo esse poema, porque quero tocá-lo com as mãos - estou chorando ao dizer tudo isso em voz alta - e este é o fundamento de toda a minha existência.

domingo, 5 de maio de 2024

Nunca antes tive tanta pulsão de vida. Quando ele chegou, tinha faíscas no olhar, grande lascívia e graça, do jeito que eu gosto. Mas - por que precisa haver sempre um mas? - o vento que passava foi soprando aquele começo. A brasa, em lugar de avivar-se, virou breve cinza.

Numa das manhãs em que nos devorávamos por toda a madrugada, ele suspirava várias vezes, com certo desalento. Me deu beijos como quem estava com saudade ou como quem se despede, com uma ternura triste, muitas palavras nos olhos e poucas palavras na boca. Ele também me disse, enigmaticamente e pedindo segredo, que de vez em quando pensa em morrer. Foi quando me senti mais perto dele do que em nenhum outro momento. Queria abraçar uma expectativa de mundo já em ruínas. Proteger, cuidar, zelar, como uma mãe. Pousar as duas mãos na sua barba, como forma de convite. Apesar de saber, desde o ponto de partida, o quanto isso tudo era errado. Não era a possibilidade da morte que me assustava, muito pelo contrário, disso eu muito entendia, era a recusa, a sua fuga, o seu movimento confuso de estar e não estar. Então, recordei os mais sábios conselhos, como sair das circunstâncias com a maior dignidade que me for possível?

Nos lábios daquela hora perdida, percebi tristemente que eu, tão vivaz, havia me apaixonado por um homem em estado lúgubre.

E eu não posso, não devo e jamais conseguiria curá-lo.

Assim, reuni algumas antigas dores, algumas lágrimas ridículas, o peso no coração, a paixão recém-nascida e retirei-lhes o alimento. 

Saí, sentei à porta do meu jardim, em posição embrionária, tudo bem, vou recomeçar, a vida é para ser recomeçada sempre. Essa ferida às vezes não sara nunca, mas (por que é preciso que haja sempre um mas) às vezes sara amanhã.

sábado, 17 de fevereiro de 2024

Religare

Não tenho Deus

Tenho duas mãos vazias

cheias de desejo de vida

Há muito deixei de repetir mecanicamente palavras que não são minhas

Passei a reler poemas, com olhos silenciosos

e a fé dos bem-aventurados 

Os poemas são minhas orações.


Não tenho Deus

Tenho deusas bem aqui na minha barriga

Sinto-me prenhe de palavras bonitas

E isso mais que me basta


De quem me condena a partir de sua torta régua

Eu sinto profunda pena

Sei bem que teu próprio deus desaprovaria

Jamais iremos mirar o mesmo ponto no horizonte.


Não tenho Deus

Tenho a mim mesma, redescoberta, viva, alegre e compassiva

Ingovernável, insubmissa

Divina


terça-feira, 2 de janeiro de 2024

Vou a uma papelaria local

Encanto-me por um caderno 

de folhas de cores sortidas

A conta ultrapassa um pouco

minhas primeiras pretensões


Em casa, entre alucinada e entretida,

escolho a caneta de rabo de sereia

e começo a transcrever poemas

Intuitivamente, todos os três são de amor.


Enquanto o bico fino de tinta azul escuro 

passeia pela página corada de amarelo,

um pensamento se forma: este meu gesto

produz uma pequena ruptura no tempo.


Estou a rasgar o grosso tecido

da inestancável corrida tecnológica

quando vou, pegada à mão da minha filha, 

a um lugar onde se vendem livros 


Um rasgo, um pequeno furo

no contemporâneo

Uma metalinguagem


Os pássaros que ainda cantam

ainda nascem das cascas dos ovos

bicando-as

Produzem, com sua recém-força,

um furo, uma rachadura

Irrompem

colocando abaixo 

toda a estrutura que antes lhes conformava.