terça-feira, 17 de junho de 2025

Presságio

Quero um homem:

Que não me queira dominar;

Que entenda que vínculo afetivo pode existir na casualidade;

Maduro o suficiente para comunicar-se com clareza;

Que demonstre constância e permaneça;

Afetivamente disponível e responsável;

Verdadeiramente cuidadoso;

Disposto e ágil;

Que tenha espaço em sua vida ou que os crave realmente largos para eu caber

sem sufocar, sem suprimir, sem anular a nenhum de nós;

Assertivo em suas vontades e intenções;

Extinto de manipulação;

Que não queira me aprisionar em um relacionamento cheio de regras opressoras;

Que não me construa pedestais;

Que não procure em mim uma serva 

nem um objeto de uso pessoal, um fetiche, uma fugacidade qualquer;

Quero um homem fora da lógica social, fora da norma monogâmica;

Corajoso para o amor, mas um outro amor

Um homem anti-romântico

Que não seja tão homem como a categoria social homem, um homem-mulher, um homem-criança;

Não busco fidelidade, compromisso e validação.

Não busco família de comercial de margarina.

Não busco fazer parte de uma coleção.

A minha ordem é a subversão. Uma brincadeira com muita seriedade, uma disciplina que no fim liberta. É leve como a bolha de sabão, é sólida como a perenidade do tempo.

No entanto, simples como a gota de chuva escorrendo no dorso da folha.

Por fim, e esta é uma síntese essencial, quero um homem cujos defeitos não me sejam um risco à  vida, à minha segurança emocional e física, minha individualidade. Estas últimas não são as minhas palavras, roubei-as de Nina, a que mantém meus olhos sempre abertos, pois tenho amigas que são faróis. É bom que o saibam.

sábado, 24 de maio de 2025

As crianças de Gaza

Lembrar das crianças de Gaza tira-me parte da alegria de ver minha filha dançar no quintal de terra com seu vestido de aniversário. Estou aqui debaixo da mangueira e essa melancolia me atravessa os olhos. A mãe de Gaza disse que pede a Deus para morrer, e eu me lembrei que a escravatura atual de Carolina, que perdeu o hábito de sorrir, era a fome, mas a guerra é pior do que a fome. Tudo que vejo sobre as crianças de Gaza tenho vontade de desviar os olhos, e desvio, olho gatinhos e galinhas, bebês e cabras. Quero me desviar da culpa de testemunhar em meu tempo a morte de crianças. Mas sou mãe. Os caminhões que nunca chegam, a ONU, o Hamas, os nomes difíceis e as bombas sem precedentes. Antes eles não atacavam hospitais, antes eles não atacavam escolas. Eu sou professora, devo falar sobre as crianças de Gaza com meus alunos. Mas tenho medo de enlouquecer, tenho medo de odiar o aluno que disser qualquer bobagem sobre as crianças de Gaza, eu posso aturar os absurdos hediondos dos meus alunos todos os dias e dar-lhes sermão, não posso aturar que falem das crianças de Gaza com desprezo. Como explicar que a violência destrói o mundo? Como fazê-los repudiar a violência? Tenho medo de me dilacerar para sempre, irreversivelmente. Amanhã falarei sobre as crianças de Gaza porque perdi o hábito de ser covarde.

domingo, 16 de março de 2025

Uma vez, quis explicar a um homem o útero.

Eu estava ainda com o cheiro do meu sangue nas mãos, breves cólicas e a água em ponto de fervura. Pensei no útero como o segundo coração da mulher, uma sensação descendente me acompanhava por dentro, ainda que não fosse cachoeira ininterrupta, pequena queda d'água. A dor que se me desprende do útero e do coração é a mesma, e mais do que lava - pranteia, alveja e prepara. Quando você se movimenta, ela se dissipa, por isso dançamos. Por isso cobrimos o ventre com panos quentes e, como as nossas avós, não lavamos a cabeça à noite. Precisamos ficar reclusas, quietas com nosso pensamento, tomando chá.

Nosso útero pulsa e sangra e isto é tão poderoso quanto belo. Isso é um milagre.

Um dia, um homem me deu uma célula, uma única célula, e eu fiz dela uma criança viva inteira, criei-a com meu corpo, nas minhas cavernas, dando-lhe tudo de mim. Ela se alimentou da minha comida, ficou forte e sadia nadando em minhas águas. E quando chegou o seu tempo, eu rachei a minha terra em mil pedaços e pari, sozinha e com ela, o meu bebê.

Choquei meus ovos de paciência, fui mãe. 

Aquele que me deu a célula deixou-me num abismo.

Segurei nas mãos das mulheres para sair.

Por que quis explicar a um homem o útero?

Agora, água fervida, chá de ervas, bolsa quente, deixo que meu sangue desça, deixo que a corola rubra se abra, encontro as minhas amigas, as minhas irmãs de alma, temos crianças crescidas, estamos em terra firme, nunca mais, nunca mais à deriva, enlaço os braços das mulheres, as crianças brincam, e nós estamos tomando chá.




domingo, 2 de março de 2025

 É festa na minha carne, na carne da cidade. De repente olho pra cima na cara dos orixás que nem entendo, na cara dos orixás por debaixo das contas e não tenho medo. Não sinto mais medo da Salvador que tiraram de mim e eu recuperei. Voltei, minha linda e maltratada, minha suave amiga, nós já fomos pisadas por tantos anos, por esses homens. No entanto, há uma coisa em nós que não se coloniza, aquilo que faz tudo girar, deixa a gira girar, balanço os quadris, mostro a minha pele, me dê a sua mão, pois eles não podem mais nos levar nada, entende? Nós estamos juntas outra vez. Você alimenta o meu espírito no mar, daqui vejo as ondas trazidas pelo navio pirata, não existe nada igual nesse mundo, sabe? De repente olho pra cima, pela janela do carro, e vejo a verdade das árvores centenárias pelas quais sempre passei. Eu só precisava de um ângulo diferente, essa era a grande chave, aquelas árvores gigantescas, bifurcando-se céu acima e terra abaixo, com suas cortinas verdes dançarinas de vento, com sua pele de musgo, aquelas árvores já foram sementes obstinadas pelo sal da vida. Aquelas árvores sabem dizer sem nenhuma palavra, eu só precisava de um outro ângulo, talvez mais custoso de encontrar, leva tempo para enxergar a leveza. Estou aqui, minha cidade tardia, olhando pra cima, ouvindo os tambores também de dentro, sambando meus pés no seu chão, não quero me entorpecer tanto, é festa no meu corpo e eu quero sentir. Todas as cores e brilhos são espelhos d'alma. Visto a minha fantasia, de repente vivo a minha fantasia, uma sereia sagrada que aprendeu a cantar. Te amo, meu carnaval.

quarta-feira, 22 de janeiro de 2025

segunda-feira, 23 de dezembro de 2024

Fevereiro, 2023

Escrevo este exercício para me ajudar a não retroceder

Eu estou tentando sair de um relacionamento abusivo porque

Eu não sou a mulher que ele quis me fazer acreditar que sou

Nenhum homem deve tentar alterar ou moldar a percepção que temos sobre nós mesmas

Eu estava anulando minha individualidade 

Eu não me sentia plenamente livre

Eu fui desrespeitada muitas vezes

Eu jamais soube dos meus limites

Por isso eles foram tantas e tantas vezes atravessados por todos

Eu me sentia profundamente sozinha

Eu naturalizei a violência que sofro

Ele usa a minha vulnerabilidade contra mim

Ele me enxerga como uma criança desamparada

Ele usa tratamento de gelo ou hostilidade como punição por comportamentos meus

Ele gosta de estar no controle e de sentir que tem poder sobre mim

Ele me acusa de praticar os abusos que ele faz

Ele invadiu minha privacidade mais de uma vez

Eu estou ansiosa em todo esse processo

Ansiosa e confusa, insegura, nervosa, machucada, raivosa, triste

Sem saber como não deixar que ele me acesse

Como se isso fosse impossível 

domingo, 22 de dezembro de 2024

Moro num país de terras quentes. Cresci entre o cerrado e a lonjura do mar, na mágica Bahia. Anuncia-se hoje a chegada do verão e as pessoas procuram se despir da dura casca que lhes oprimia os desejos. O verão é um convite para uma vida mais vermelha. Mas eu não posso fazer parte disso. Não posso agora rir de uma vida desgraçada que se arrastou pelo ano, porque não a tive. Não posso finalmente retirar o sutiã para respirar, porque, esse ano, nada me prendeu. Eu não posso me despedir de uma dureza que não esteve comigo. Eu fui verão o ano todo. 

Dizem que os bons sentimentos não produzem bons poemas. E eu lhes digo que cada poema estará impregnado do sumo da alma de cada poeta, todos têm seu sabor. Essa é a beleza. Eu só posso entregar-lhes poemas doces, morangos pelos campos, pêssegos aveludados, mangueiras carregadas, maçãs banhadas de luz, é assim que me sinto. No meu país, não anseio pela chegada do verão, porque fiz do meu coração um sol. Quando chove, fico a olhar o arco-íris.

terça-feira, 3 de dezembro de 2024

Hoje, cheguei em casa, joguei as chaves, sentei-me para afagar o cachorro. Veio minha filha, ela comia uma espiga de milho cozido. Olhei-a. Um lado de seu cabelo pendia suavemente atrás da orelha, ela estava ocupada a comer, grão por grão, distraída, tem seis anos de mundo apenas e já tanta destreza. Meus olhos encheram-se de uma emoção incontinente. E meus pensamentos voaram pela plenitude do amor por aquela criança. Toda declaração que me veio à boca parou ali e eu emudeci. Nada seria o bastante.

Tomara que ela nunca se perca de mim, que eu não me perca dela, que eu não me perca de mim tentando não me perder dela, tomara que ela nunca se perca de si.

Fui imensamente feliz naquele momento, brincando com o cachorro, uma espiga e minha filha. Apareceu, então, uma breve melancolia ao olhar para meu passado, vendo-me nela, uma menina adorável e inteligente, grande e linda. Refiz o percurso como quem perde um brinco no parque, procurei-me. Tentei saber em que ponto eu deixei de ser uma criança amada para me transformar numa mulher. Na medida em que eu deixei de ser uma sombra, meus pais ficaram para trás, sem saber como lidar comigo. Cada vez mais, e mais, até me desconhecerem, até se tornarem estranhos.

O que posso eu fazer para que minha filha nunca precise pagar este preço?

Não há garantias. Posso amá-la ferozmente e devotar toda a minha alma em seu crescimento. Não há garantias. Por isso, cada hora ao seu lado é dourada. 

domingo, 10 de novembro de 2024

Triste, louca ou má (Feliz, sã e boa)

Estou escandalosamente feliz

A única coisa que agora se difere 

das outras épocas da minha vida é a minha liberdade 

Estive comendo apenas as bordas

Era doce 

Contentava-me

Hoje, não 


A única coisa que agora se difere

das outras épocas da minha vida

é que não tenho um homem

Ou melhor

Nenhum homem me tem

Os homens retiravam a minha vitalidade 

Ocupando-se largos nos meus espaços

Sugavam toda a energia do meu coração 

para depois clamarem:

Nossa, como você está vazia!


Preciso levar às mais jovens essa babilônica desmistificação

É bastante improvável que um casamento lhe traga qualquer porção de satisfação consigo mesma.  

Não queira ser escolhida 

Escolha!

Não queira apenas servir

Faça da tua vida um banquete!

É preciso reger o próprio destino 

É preciso reivindicar seu corpo como seu território 

É preciso pertencer a si mesma

É preciso saber as suas querências

para, então, persegui-las.

É preciso decidir

Conhecer-se, profundamente e em cada dia

E traçar um mapa,

com seus limites bem demarcados

Para que ninguém os atravesse

É preciso saber quem se é 

Longe dos outros 


Estes casamentos romântico-monogâmicos,

Minha querida,

São gaiolas 

Repletas de plumas, almofadas e diamantes

falsos

Tão confortáveis gaiolas

Não se esqueça para que servem.

segunda-feira, 21 de outubro de 2024

Quando estamos com o outro, inevitavelmente, nos distraímos de nós mesmas

É fundamental entender esse advérbio enfaticamente destacado.

É fundamental, mulher, entender que não te podes perder de vista.

O caminho de volta, marcado outrora com migalhas de pão, deve ser ladrilhado com brilhantes 

Não te percas de ti

Retorne sempre e sempre

Recorde

Traga de volta ao coração a verdade:

O respeito pela sua inteireza deve ser maior do que o afã por ser amada.