quarta-feira, 1 de outubro de 2025

Ache um grande gostoso

Deixe o gostoso se lambuzar de você 

Lambuze-se do grande gostoso

Vejam o filme de Bob Marley 

com suas pernas em cima do peito dele

Bebam cerveja juntos

naquela atmosfera escarlate na beira do rio

deixe o corpo tremer de tesão 

só por ele tocar a ponta do seu cabelo

Transem até faltar oxigênio no cérebro 

Deixe o grande gostoso pintar Bobbie Goods

Na cozinha da sua casa

Ria com ele

Deixe que ele converse

Sim, ele não para de falar

E ele nem te escuta

Então, quando o grande gostoso chover e não molhar

quando ele ir e vir e for e voltar

Lembre-se de que a grande gostosa é você

Se toca  

Vá dando para trás 

Não assim

Assim

Arranje alguém que goste da sua franja vegana

Pegue seu banquinho 

Recolha seus caquinhos

que você nem quebrou, minha filha

Se saia

quarta-feira, 17 de setembro de 2025

Preciso procurar urgentemente um modo de parar de culpar os meus pais

Eu não sei como parar de culpar os meus pais

O que devo fazer para parar de culpar os meus pais?

Vou chorar-lhes a morte por séculos a fio pelo fracasso amargo de nunca ter parado de culpar os meus pais

Vou morrer triste e afogada em lágrimas por não ter aprendido a parar de culpar os meus pais

Vou esmurrar os túmulos, esfolar os calos até saber o que é preciso para não culpar os meus pais


O que eu fiz com o que meus pais fizeram de mim?

Por que diabos sabemos medir a exata extensão de uma ferida, mas não somos capazes de fechá-la?

Onde encontro os remédios que fecham essas malditas feridas?

Por que diabos não vamos embora quando sabemos - nós sabemos - que já é hora de partir?

Por que o mínimo simulacro do encontro amoroso nos cega tanto?

Por que o mínimo simulacro do encontro amoroso nos arranca as forças?

Por que não consigo me recompor e sair? Por que não atravesso aquela porta?



quarta-feira, 3 de setembro de 2025

It's never over

ouço nos meus fones sem fio

cansando-me de homens que não me sabem navegar

homens que não duram nem para a literatura

preciso estar no mastro

mais altiva do que apareço nos meus poemas

atada como Ulisses 

no posto do leme

para ouvir e resistir,

resistir ao chamamento do fundo do mar

o mar é lindo, eu sei

olhe esta luz que se deita em sua pele de água 

no entanto,

ninguém pode respirar na morada das sereias

ninguém pode respirar na morada das sereias

eu não quero mais nadar contra a minha correnteza

Oh mother, I can feel the soil falling over my head



segunda-feira, 1 de setembro de 2025

Há uma mulher em mim que dança 

faça chuva ou faça sol

inverno, tempestade 

para ascender leoas e cobras 

suas ferocidades

serenas fúrias

firmes amenas


Há uma mulher em mim que dança 

na cara do perigo 

no dorso da libélula 

no rabo do foguete

ao som das trombetas


Morfada em bruxa

buscando fadas

dança para além do corpo

além da memória 

para o além 


Há uma mulher em mim que dança 

para o mistério de ser pessoa

carne, chama, movimento

água, sereia e terra

Há uma mulher dançando

A mulher que dança é uma mulher que é.




terça-feira, 17 de junho de 2025

Presságio

Quero um homem:

Que não me queira dominar;

Que entenda que vínculo afetivo pode existir na casualidade;

Maduro o suficiente para comunicar-se com clareza;

Que demonstre constância e permaneça;

Afetivamente disponível e responsável;

Verdadeiramente cuidadoso;

Disposto e ágil;

Que tenha espaço em sua vida ou que os crave realmente largos para eu caber

sem sufocar, sem suprimir, sem anular a nenhum de nós;

Assertivo em suas vontades e intenções;

Extinto de manipulação;

Que não queira me aprisionar em um relacionamento cheio de regras opressoras;

Que não me construa pedestais;

Que não procure em mim uma serva 

nem um objeto de uso pessoal, um fetiche, uma fugacidade qualquer;

Quero um homem fora da lógica social, fora da norma monogâmica;

Corajoso para o amor, mas um outro amor

Um homem anti-romântico

Que não seja tão homem como a categoria social homem, um homem-mulher, um homem-criança;

Não busco fidelidade, compromisso e validação.

Não busco família de comercial de margarina.

Não busco fazer parte de uma coleção.

A minha ordem é a subversão. Uma brincadeira com muita seriedade, uma disciplina que no fim liberta. É leve como a bolha de sabão, é sólida como a perenidade do tempo.

No entanto, simples como a gota de chuva escorrendo no dorso da folha.

Por fim, e esta é uma síntese essencial, quero um homem cujos defeitos não me sejam um risco à  vida, à minha segurança emocional e física, minha individualidade. Estas últimas não são as minhas palavras, roubei-as de Nina, a que mantém meus olhos sempre abertos, pois tenho amigas que são faróis. É bom que o saibam.

sábado, 24 de maio de 2025

As crianças de Gaza

Lembrar das crianças de Gaza tira-me parte da alegria de ver minha filha dançar no quintal de terra com seu vestido de aniversário. Estou aqui debaixo da mangueira e essa melancolia me atravessa os olhos. A mãe de Gaza disse que pede a Deus para morrer, e eu me lembrei que a escravatura atual de Carolina, que perdeu o hábito de sorrir, era a fome, mas a guerra é pior do que a fome. Tudo que vejo sobre as crianças de Gaza tenho vontade de desviar os olhos, e desvio, olho gatinhos e galinhas, bebês e cabras. Quero me desviar da culpa de testemunhar em meu tempo a morte de crianças. Mas sou mãe. Os caminhões que nunca chegam, a ONU, o Hamas, os nomes difíceis e as bombas sem precedentes. Antes eles não atacavam hospitais, antes eles não atacavam escolas. Eu sou professora, devo falar sobre as crianças de Gaza com meus alunos. Mas tenho medo de enlouquecer, tenho medo de odiar o aluno que disser qualquer bobagem sobre as crianças de Gaza, eu posso aturar os absurdos hediondos dos meus alunos todos os dias e dar-lhes sermão, não posso aturar que falem das crianças de Gaza com desprezo. Como explicar que a violência destrói o mundo? Como fazê-los repudiar a violência? Tenho medo de me dilacerar para sempre, irreversivelmente. Amanhã falarei sobre as crianças de Gaza porque perdi o hábito de ser covarde.

domingo, 16 de março de 2025

Uma vez, quis explicar a um homem o útero.

Eu estava ainda com o cheiro do meu sangue nas mãos, breves cólicas e a água em ponto de fervura. Pensei no útero como o segundo coração da mulher, uma sensação descendente me acompanhava por dentro, ainda que não fosse cachoeira ininterrupta, pequena queda d'água. A dor que se me desprende do útero e do coração é a mesma, e mais do que lava - pranteia, alveja e prepara. Quando você se movimenta, ela se dissipa, por isso dançamos. Por isso cobrimos o ventre com panos quentes e, como as nossas avós, não lavamos a cabeça à noite. Precisamos ficar reclusas, quietas com nosso pensamento, tomando chá.

Nosso útero pulsa e sangra e isto é tão poderoso quanto belo. Isso é um milagre.

Um dia, um homem me deu uma célula, uma única célula, e eu fiz dela uma criança viva inteira, criei-a com meu corpo, nas minhas cavernas, dando-lhe tudo de mim. Ela se alimentou da minha comida, ficou forte e sadia nadando em minhas águas. E quando chegou o seu tempo, eu rachei a minha terra em mil pedaços e pari, sozinha e com ela, o meu bebê.

Choquei meus ovos de paciência, fui mãe. 

Aquele que me deu a célula deixou-me num abismo.

Segurei nas mãos das mulheres para sair.

Por que quis explicar a um homem o útero?

Agora, água fervida, chá de ervas, bolsa quente, deixo que meu sangue desça, deixo que a corola rubra se abra, encontro as minhas amigas, as minhas irmãs de alma, temos crianças crescidas, estamos em terra firme, nunca mais, nunca mais à deriva, enlaço os braços das mulheres, as crianças brincam, e nós estamos tomando chá.




domingo, 2 de março de 2025

 É festa na minha carne, na carne da cidade. De repente olho pra cima na cara dos orixás que nem entendo, na cara dos orixás por debaixo das contas e não tenho medo. Não sinto mais medo da Salvador que tiraram de mim e eu recuperei. Voltei, minha linda e maltratada, minha suave amiga, nós já fomos pisadas por tantos anos, por esses homens. No entanto, há uma coisa em nós que não se coloniza, aquilo que faz tudo girar, deixa a gira girar, balanço os quadris, mostro a minha pele, me dê a sua mão, pois eles não podem mais nos levar nada, entende? Nós estamos juntas outra vez. Você alimenta o meu espírito no mar, daqui vejo as ondas trazidas pelo navio pirata, não existe nada igual nesse mundo, sabe? De repente olho pra cima, pela janela do carro, e vejo a verdade das árvores centenárias pelas quais sempre passei. Eu só precisava de um ângulo diferente, essa era a grande chave, aquelas árvores gigantescas, bifurcando-se céu acima e terra abaixo, com suas cortinas verdes dançarinas de vento, com sua pele de musgo, aquelas árvores já foram sementes obstinadas pelo sal da vida. Aquelas árvores sabem dizer sem nenhuma palavra, eu só precisava de um outro ângulo, talvez mais custoso de encontrar, leva tempo para enxergar a leveza. Estou aqui, minha cidade tardia, olhando pra cima, ouvindo os tambores também de dentro, sambando meus pés no seu chão, não quero me entorpecer tanto, é festa no meu corpo e eu quero sentir. Todas as cores e brilhos são espelhos d'alma. Visto a minha fantasia, de repente vivo a minha fantasia, uma sereia sagrada que aprendeu a cantar. Te amo, meu carnaval.

quarta-feira, 22 de janeiro de 2025

segunda-feira, 23 de dezembro de 2024

Fevereiro, 2023

Escrevo este exercício para me ajudar a não retroceder

Eu estou tentando sair de um relacionamento abusivo porque

Eu não sou a mulher que ele quis me fazer acreditar que sou

Nenhum homem deve tentar alterar ou moldar a percepção que temos sobre nós mesmas

Eu estava anulando minha individualidade 

Eu não me sentia plenamente livre

Eu fui desrespeitada muitas vezes

Eu jamais soube dos meus limites

Por isso eles foram tantas e tantas vezes atravessados por todos

Eu me sentia profundamente sozinha

Eu naturalizei a violência que sofro

Ele usa a minha vulnerabilidade contra mim

Ele me enxerga como uma criança desamparada

Ele usa tratamento de gelo ou hostilidade como punição por comportamentos meus

Ele gosta de estar no controle e de sentir que tem poder sobre mim

Ele me acusa de praticar os abusos que ele faz

Ele invadiu minha privacidade mais de uma vez

Eu estou ansiosa em todo esse processo

Ansiosa e confusa, insegura, nervosa, machucada, raivosa, triste

Sem saber como não deixar que ele me acesse

Como se isso fosse impossível