domingo, 27 de dezembro de 2020

O rasgo na face de Deus virou cicatriz
Espantei os pombos com gestos efusivos
Na verdade, fiz que Ele não existisse
Porque te levou do mundo
Era já um fio de neblina
Certa bobagem
que agora desapareceu

O que existe 
pesado como filho grande
é tua saudade.
Tua viva lembrança nas minhas palavras
e cartas que não receberei

Te mando um bordado
de Torto arado
Você deveria ler!
É lindíssimo...

Mas é tarde.
É mais uma das minhas tolices.

Penso comigo se a terra em que teu corpo descansa já está lavrada.
Que bichos andaram sobre ela?
Que plantas cresceram?
Seres tão indiferentes 
ao medo que dorme nas dobras do tempo.
A quem farei perguntas descabidas?

Você é, mais do que nunca, 
a bruta flor trepada aos portais 
que levam a lugar algum.

Estão novamente repousados no parapeito sete pombos furta-cor.
Sinto que a ferida divina se abre por dentro
Pois ainda sangra e ninguém vê.
 

terça-feira, 1 de dezembro de 2020

Sou mãe e escritora

Sei que tenho filho e escrevo

É a mesma loucura de quando estava grávida 

E não sabia se de mim sairia um crocodilo. 

É difícil assimilar 

realidade tão devastadora 

No entanto, a navalha da materialidade é perversa...

Não.

A navalha da materialidade corta a minha carne para que eu sinta que sou de verdade.

E que estou inteira.


domingo, 9 de agosto de 2020

Desejos para minha filha

Não sei se te devo aconselhar

Por isso escolhi a palavra desejo

Pressinto que o meu papel deva ser contrário a tudo isso

Apenas pressinto


Desejo que você consiga proteger os seus filhos

Mesmo que eu não tenha demonstrado como fazê-lo

Mas continuo tentando

Ainda espero

Tudo é muito novo para mim

Compreendi que 

minhas tentativas de defesa foram exaustivamente caladas


Desejo avós melhores para seus filhos

Que te respeitem primordialmente

E reconheçam a mãe que há em você

Irei me reconstruir para isso


Que o seu não seja fogo

E arda em crispações cada vez maiores


Que você sinta a plenitude 

De ser compreendida 

Apesar de tudo

Sem precisar manter 

a sua verdade congelada

Pela resiliência

De se fazer forte


Que você seja inteira

Uma mulher agarrada aos seus desejos

Sem recuar

Sem pedir desculpas

Estes são os meus anseios.



segunda-feira, 29 de junho de 2020

Marido e mulher

A mulher espantou-se quando finalmente começou a usar a palavra marido sem hesitar
Alguma coisa adormecida entre suas orelhas a fazia secretamente desconfiada
Alguns sinais são claros
Outros, o feminino nos obscurece

A mulher já não se espantou tanto quando teve vontade de apertar a garganta do marido até... enfim
Crescia-lhe ódio pelo desequilíbrio

Como era feio esse marido cego e inútil
Como era feio esse marido

A mulher percebeu a inapetência
E disse foda-se

Mato a feiúra e parto na próxima van pós-pandemia
para comprar cigarros
Os cabelos tingidos de roxo

Não se pode nem mesmo terminar um poema
Ser mulher é uma violência sem fim.

quarta-feira, 29 de abril de 2020

Iohana,

Escuta as lágrimas que caem
Inundando tudo...
Não, não
Descansa

Descansa de usar o corpo
Que nunca te coube
Dorme
Aí tem árvores imensas?
Eu precisava saber
Não, não
Esqueça
Eu não quero que me responda
Esse é só meu jeito de preencher o ar

As luzes do teatro do mundo
se apagaram finalmente
Escuta o apelo das pedras
No bolso do casaco
Não você, Iohana,
O leitor
Estou apenas sendo contemporânea

Ana
Florbela
Silvia
Medeia
Uma tragédia
Sem o último ato
Mas deixa o ato de ser o último
Só porque não o sabíamos?

Hilda esteve rouca
De tanto chamar por você
Ela já tem um novo lar
E nós
Estamos há 35 dias devassados
Entre estilhaços
Sombrios
Sem teto

E você, como está?
A pergunta veio dolorosamente atrasada
Diga-me: É isto liberdade?
Existe o nada?
Eu precisava...
Já chega, sim?
Não vim despejar minhas necessidades

Fiz poemas para salvar você
Mesmo que agora só exista o caos
Desculpa, Iohana
Descansa

Você vive dentro do meu amor
Não espero mais que me perdoe
por essa vida que me nego a tirar-te.

Eu não posso suportar
que você não exista
que eu não me lembre
da última frase que você me disse
Não suporto saber
que eu não estava lá
E tampouco estou agora

Eu te amo, Juju
Dorme teu sono justo





sábado, 29 de fevereiro de 2020

O verdadeiro desastre

O verdadeiro desastre natural
é deixar um bebê chorar
sozinho no universo
tecendo a noite com o fio do desamparo

É supor que a borboleta prefere
que rasguem-lhe o casulo

É isso que estão a fazer
nestes tempos tecnológicos

As mulheres veem os lobos a correr
e não lhes seguem
Elas também quebradas por dentro
há muitos séculos

A maior violência
mãe de todas as outras
É não saber amar aqueles
que vieram do teu ventre
E os que não

Todos os seres são carne de tua carne
Está é uma verdade quase impossível de alcançar

O planeta é desastroso.

Uma luz e outra

A mulher que dá a luz a um filho
não pode dar luz também ao pai
Pois a luz que se dá ao homem queima-o
E o deixa em total escuridão

Toda a luz está para o filho
Como todo pai deve estar para a mãe
Pois, afinal, já não temos aldeias

Por que é tão difícil cuidar?














Coragem

Eis aqui um pedido
a todos os amigos
que nasceram escritores e,
por força capital,
acabaram por se tornar
professores de língua portuguesa

Heterodoxos por fatalidade congênita,
mas não custa lembrar,
o nosso amor pela palavra é capaz de acender o coração do outro
Por isso é imprescindível,
É urgente
Façamos um livro para o mundo
Nada importa mais que assumir seu destino
E deixar aqui o filho, a árvore, o sangue
Um livro
Para o futuro que jamais seremos

Só assim, despidos,
Poderemos acariciar os cabelos de deus