sábado, 18 de dezembro de 2010

Tu que me olhas

Milord, que queres de mim, afinal? Posso confessar-te outra vez. Hoje tenho dores enraizadas a meu ventre, estive curvada, nem posso atender-te, as minhas regras, tão irregulares, te fizeram armadilha.

Primeiro minha linguagem se estende em demasiadas palavras, entorno-as em nossas taças, e tu brindas encantado... e por fim? Não viste o desperdício deste palavrório? Milord, palavras são sacos vazios, achaste-me mesmo tão substanciosa? Já não ouviste de perto o enigma dos poetas?

Desde então, a minha vista quer recair-se sobre teus olhos. Não! Eu só quero olhar-me a mim própria. E se em tua retina houver-me o segredo? Dilatar-me-ei esfinge desvendada.

Depois de ti, os espelhos da minha casa, longamente, abrem e fecham as pálpebras. Não tens receio de invadir disfarçado meu quarto? Meus reflexos tornaram-se miragem, assusto-me, procuro tocar-me a verdade, mas entre meus dedos se esvai um resto fantasmagórico. És tu que me observas talvez deveras diversa de meu ser. Este jogo de olhares avessos é um fascínio perigoso, como todo fascínio.
E penso que tu queres, sorrateiramente, escalar o verso que se desprende da minha boca.
Tu queres, Milord?

sábado, 11 de dezembro de 2010

Fulana Outra


Imagino tua fulana
Imagino tua pra me doer

Não sei se ela nua
Inunda molhada tua barca
Invento fulana seca

Não sei se grita e vibra
no meio da tua cabeça
Invento fulana muda

Não sei se tem flor no cabelo
Invento fulana calva

Não sei o sabor
Da cor do seu cheiro
Amarga fulana, amarga

Fulana, pra mim,
é uma Macabéa triste
É uma Teresa desesperada
Ainda mato fulana afogada
Na lágrima que eu inventei

Essa fulana bem-amada
Ai que dor, que dor mordida!
Praga à fulana, praga
À tua fulana rica!
Nenhuma fulana merece tua dádiva

Eu fiz tua casa
Sou pobre Penélope
Sou o teu desejo
Sonho que mato fulana
Na cama do nosso leito

Imagino tua fulana
Imagino tua pra não morrer



quarta-feira, 8 de dezembro de 2010

Joãoubaldorribeiro*

Você tem cara de que tem carne doce
Periculosidade
Se ao menos você se livrasse
Desse par de óculos escuros

Você tem cara de quem sabe
Mas só cara não resolve

Se eu quisesse um dia
Você seria muito eloquente
Eu sei
Você me ensinaria a fumar
E a ler poesia hermética
Mas só isso
Não adianta
Aliás, eu preciso?

Você derramaria tanto discurso
Alcoólico político
Que eu me enfastiaria
Na nossa conversa de corpo
Você seria rei

Oh, me desculpem
Eu não queria ser
Hétero-normativa
Mas vocês sabem do que eu gosto
Vocês sabem do que eu gosto mais





sexta-feira, 3 de dezembro de 2010

Hilda

Meu nome é Hilda. Não é de guerra, não há guerra. Dou-me assim desde menina. É por amor. Amor, ele mesmo. Eu gosto de ver o gozo no sorriso dos meninos, das moças. As viúvas vêm se despedir do luto comigo, eu lhes abro os braços de volta para as cores, você quer lindeza maior? Os que se acham cornos, esses são tão ressentidos, choram tanto depois, pensando macular o leito amado, mas eles sempre voltam porque precisam; e eu sei que os faço felizes. Os velhos, então. Tão delicados. Toda a gente os desacredita, só eu sei o segredo que traz o sangue deles. Quando corre forte, regozijo! Eles também podem ser vigorosos, mesmo os desaprendidos. E os loucos, tão mansinhos, gostam muito de me lamber, ficam assim quietos e suaves me vendo gemer, bastante admirados, pensando-me doida, talvez. Os iniciantes, ah, que delícia é o broto da flor! Eu vou guiando, vou dizendo, enfiando, quase choro de ver-lhes o riso da maturidade. Aos órfãos, dou as tetas, só assim pra suprir-lhes a carência, que é muito grande. Os afeminados sempre preferem o rabo, eu me rolo de rir. Às internas do colégio das freiras, faço bastantes regalias, pobrezinhas, me chegam assustadas, achando pecado, é difícil despudorá-las, desfazê-las, mas quando enfim levanto as saias, dificilmente vejo calcinha, é um alívio.
Um dia me veio um padre. Bem, com padre eu não mexo. Me ofereceu até vintém, não tinha sabido que eu não sou puta, expliquei. Pagando é na rua dos Miranda, o que eu dou é amor e nisso dinheiro não entra, o senhor não jurou seu celibato? Se jurou mal jurado, isso é lá com os seus santos. Fez-se de birra, ficou bravo, mas saiu pisando fino, do jeito que entrou. Até meio me arrependi, tanto tempo que esse pobre não vê boceta, não é? Como é que vai ver o amor? Mas logo o motivo ressaltou. É culpa grande desse padre se todo esse povo me procura. Os lascivos mesmo são poucos. Daí me gasto enormemente pra limpar a sujeira que esse padre faz. Nas rezas, nas pregações, exaltam uma virgem. Veja lá se isso é felicidade. É ele de lá fazendo prisão e eu cá me desdobrando, inventando as chaves. Mas, pensando calma, bem que eu devo um bocadinho a esse homem. Que seria da minha vocação de ajudar essa gente? Do coitado do amor, que seria?
Bom é viver com um doce pudor pra deflorar.

quinta-feira, 25 de novembro de 2010

Senhor,

Que esta prece, restos do mais profundo impossível, não permaneça de linhas fugidias. Que a minha súplica enlace ouvido intercessor e que este santo se afeiçoe aos meus bobos padecimentos, porque são os únicos que tenho e sobre os quais posso discorrer.

Senhor, faça brotar em mim o afã dos bons humanos. Que a minha vontade não teime em ser temporária, não seja tão nuvem faceira, tão inconstante, para que a mão não canse e eu possa dizer que obtive a glória das conquistas.

Que a lágrima escorra necessária, não tão inútil, dramática em demasia, para que eu possa ver que dentro são vazias as tempestades. E que lave, que passe, que seja rara a lágrima avermelhada.Que lástima não encontre casa em meus olhos, que lamúria não apeteça minha boca. Alveja, Senhor, minha alma. Que se tornem amigos os ínvios caminhos. Permita que eu tenha morada, se outro não há.

Tira-me este pudor de escolher, tira-me esta fraqueza diante dos meus. Traga-me o doce da paz-ciência.
Que eu não me feche para a caridade, que eu guarde em mim o dom dos animais. Não atine que eu caia apavorada diante do mal, nem que eu hesite perante o niilismo, porque uma quase descrença já é sofrer de mais. Que eu resista diante do poço que a tudo consome chamado tristeza. Que o belo não seja minha pior armadilha, se até mesmo a consciência não suprime seu perigo. 
Desfaz-me das mortalhas.
Exila-me as vontades frustradas. Que eu não seja cão preso e que me atire no baile sem pressa. Que eu aconteça.
Que eu não me esqueça de contemplar tudo que é vívido e tudo que brilha.
Que ao meu lado, um anjo, também de joelhos, capture no ar as palavras que me saltam e ao afagá-las retire do sumo os balbucios ralinhos.
Vê-me? Preciso tornar-me o que sou e nunca fui. Não tão assombrada de parecer sozinha no mundo. Força. 
Em hora da vida que me resta, deixa eu acreditar que família é baluarte.

E, em hora de minha morte, deixa eu me lembrar que posso segurar suas mãos.
E por favor, Senhor, exista outra vez!
Eu preciso te orar muito mais.

terça-feira, 16 de novembro de 2010

Querido vampiro,


"Há três dias, afeiçoada à velhinha, não foge a mosca por entre as grades da janela."
 Dalton Trevisan

Você poderia contar-me
um cessar de solidão
Da minha
Ajude esta confusão
Diga-me!
Como ser um
sem estar só?

(pensamento)

Ou quem sabe, vampiro
Juntamo-nos depois
Podemos inventar uma solidão
Pra cabermos nós dois





quinta-feira, 11 de novembro de 2010

Tô de mudança


(As mudanças interiores são bem mais lentas do que o curso dos rios e tanto mais rápidas do que nossa apreensão. Quando nos apercebemos dos seus primeiros sinais, há muito lá estão alojadas, em processo fecundatório. O tempo anda a lhes dar as mãos. E ao meio-dia de uma idade humana, creio já ser possível colher algumas delas.)

Hoje eu mudei só por respirar.

E você?
Tem casa no mundo?

Pra você

Dependurado na barra da minha saia de papel
Ele procurou pontos de seguimento
no labirinto-do-que-eu-não-disse.
Gritei, discordei.
Ele chamou "entrelinha".
- Ora! Invenção também existe.
- Mas que bobagem, Inácio!
Leite de pedra é tão amargo.

sábado, 6 de novembro de 2010

O que querem os homens



Cansei disso!
Dessa esqualidez, dessa magreza quase sem exceção, dessa abundância estratégica de carne. Mas que pulsos e calcanhares mais rebeldes! Acabarei com os dois, dias roliços me hão de chegar!
Cansei dessa hipocrisia, mãe! Quero uma robustez não condizente com meus ancestrais, quero os doces prazeres da futilidade estética.
São os homens, mãe. Os homens não desejam minha cabeça, eles não podem comer meus poemas, porque poema não se come, entendeu? Pobre de um poema diante de uma bunda.
Vou correr ao prato de feijão que você me preparou.
Que tudo o que os homens querem é a superficialidade do amor.




segunda-feira, 1 de novembro de 2010

Esmorecer

Não, não pôde mais meu coração
Viver assim dilacerado
__________________________

Eu poderia morrer
Eu juro
Ouvi-la cantar assim
É já um princípio

Não que eu mate a mim
Não há cá vocação,
Mas se acaso a morte resolve
deitar seus olhos funâmbulos
- Mansos e terríveis - sobre mim
Eu me entregaria num sorriso triste

Não te orgulhes desse cantar, Elis
Trazes a morte nele enredada

____________________________

A derramar melancolia em mim
poesia em mim




Elis e Tom - Modinha:  http://www.youtube.com/watch?v=-NdnPv_frPw 

sábado, 23 de outubro de 2010

Sonhei que na minha cabeça havia crescido generosos fios alvos, eu era a copa de um ipê brilhante, exibia altiva a cabeleira de algodão a todos os meus parentes. Eu tinha rugas e os olhos capitulescos. A minha boca cerrada como que guardando o grande mistério do mundo. Eu era uma velha e andava feliz, os jovens beijavam as minhas mãos. No fim do dia eu sorria para as paredes: tenho grandes conhecimentos. Quando acordei, por sobressalto, uma enorme aflição se apossou de mim, eu era ainda um sonho, seus pedaços malucos aturdiam meus sentidos. Mas à porta de minha consciência uma fala arregalada jazia: és velha e não há riquezas, és velha e continuas falando à solidão.

quinta-feira, 23 de setembro de 2010

Ouça, Amor

Oh, meu Amor, tu não germinas mais consoantes no meu ventre. Mordi a tua boca como se morde poema gordo, no entanto, o que escorreu era ralo e tão vago que cuspi ao chão um crisântemo velho, aquele pegajoso crisântemo inodoro. E senti o útero secar-se...

Porque tu não vais embora ao invés de misturar-se neste ninho de pathos? Ah, maldito Amor ardiloso ascendendo minhas dores sepulcrais.

Deixa, Amor, meu coração ser oco. Deixa ser aborto esse morto, que minha solução é o nada.

Ouça, Amor,
Esquecer é trair

É inútil o imperativo ou a súplica se nada te posso dedicar...





Imagem: (Conrad Roset)

quarta-feira, 22 de setembro de 2010

Ouve, Rute

Ouve, Rute, apenas ouve e lembra-te do grande olho estriado que pende do teto do mundo – mistério gozoso que inunda grosso o charco do corpo estortegado e retorna incólume ao seu lugar nenhum.  Sede paciente, Rute, e ouve do olho espiralado o silêncio do seu nome que desaba sobre os tetos das casas vazias, inundando pegajoso as telhas para pingar – pouco a pouco a pouco – no chão cru do de dentro. Volve à olaria do teu pai e indaga ao barro marcado, abocanha a consoantes e vogais, enterra em teu ventre todos os sons e ainda assim não vais parir o nome do olho inamovível.
Acalma-te, parva Rute, e ouve tudo o que é inominável – inútil inquietar-se tanto, tu não te moves de ti -, apenas ouve e lembra-te do grande olho.

Joana Castro




Imagem: Capa de P•U•L•S•E - Pink Floyd

quinta-feira, 2 de setembro de 2010

Delgadina

O teu peito é quase doce
De camélias e frutos silvestres
Oh, não te movas, derrames!
Oh, não te movas de mim!
A minha língua goteja flambante
No quente fulgor do carmim.

Quando no leito, sejas
Maduro punhado-cereja
Que o licor ruboresça meus lábios!
E deixa, deixa sangrar madureza,
O sofrer que é deleite e enseja
A louca libido dos sábios.

Delgadina, Delgadina,
Que para seres rubi
Deixa cravejar-te meu falo.

quarta-feira, 1 de setembro de 2010

Melancor












A tinta é branca
Do branco mais senil...
__________________________________

Porque o poeta tem gosto natural por tristeza
E a beleza é o que vem depois

segunda-feira, 16 de agosto de 2010

Prelúdio da flor

As faces ainda ruborescem
Os lábios são róseos, sublimes
Os olhos não são de lince
São d'água, de proteção carecem

Queres abocanhar um fruto
Mas não vês que o sumo
há de adstringir-lhe a boca
Tu forças o desabrochar de uma rosa
Só porque lhe parece um tanto tentadora?

Apenas rogo-te que não queiras sentir deste âmbar
Se não forem puras as tuas orações
Te lembres que pétalas tais estão esmuiçadas
Como que resto de alimento a leões...


Escrito em 04/VI/2007

sexta-feira, 13 de agosto de 2010

Deliberados





Não te quero de apetites comedidos, amor

Não sei pecar só

sábado, 10 de julho de 2010

Sinergia (a Anike)

"isso de querer
ser exatamente aquilo
que a gente é
ainda vai
nos levar além"
(Paulo Leminski)


Sempre tive medo
de tatuar palavra,
tem-se já tanta
e t e r n i z a ç ã o
E pintura é coisa
mais subjetiva,
combina mais
com esse paradoxo
que é cravar na pele
um sonho

Sempre tive medo
de banalizar,
Então, você sabe,
Teria de ser aquela
que tudo encerra,
a morada dos inefáveis
seres d'além daqui

E não é que você achou
a melhor palavra do mundo?

p.s.: Não te contei ainda
mas sonhei com você

quarta-feira, 7 de julho de 2010

Relativismo

Temos todos pernas finas
Não vigorou-se a fibra forte
de pernas boas para a vida
Um irmão que esconde a finura
em camadas e camadas adiposas
Uma irmã que finge e se aprimora
para sua vaidade virar músculo

Só meu pai e eu assumimos
essa finura tão dura e recalcada
que contemplamos a nós mesmos
neste não gastar de corpo
que é não dizer,
que é bater de portas

Mas um dia o mundo explode
(Um dia o mundo explodiu)
Mas um dia o mundo explode
Outra vez

...E minha mãe exibe grossas pernas
de carregar casa no lombo

quinta-feira, 24 de junho de 2010

Tarde inoculta

Mais sabe você do que os que me chegam antes pelos olhos.
E mesmo a pintura que eu mesma produzi tem seus traços a delinear por cima.
E sinto gratidão ou frenesi ou um tanto dos dois, se afinal ainda prevalece a vaidade (de que me leiam), ou do contrário encerraria-me outra vez numa alcova de palavras murchas.
Mais sabem os como você do que os que invadem-me o círculo delicado da pessoalidade, sem que eu consinta, por forças naturais que não as minhas.

Não me deixe desaparecer!
Tendo a escrita como causa maior, não existo porque escrevo, existirei se me lerem...

Não tenhas dúvida da poesia disso tudo.

sexta-feira, 11 de junho de 2010

Bucólicas

"I feel your racing heart
My liquid silver arms extended
These waves aren't far apart
Black gold in clawfoot tubs unchanging
I am fire, where's my form?
Whisper crimson I intrude
There's light beneath your eyes
New overtones in view
Endless form, endless time"
(MGMT-4th Dimensional Transition)

      








Corríamos nus, flutuantes por árcade colina, quase a pisar a relva, contornávamos horizontes em movimentos de bicho-preguiça, languidecidos, não tínhamos músculos. A nossa carne era polpa branca das pitombas, nosso sangue seiva verde, pulsando em finas veias doiradas, corriam pelas costas cabeleiras de melgaças raízes.
      Corríamos envelhecendo invertidos, o suco dos olhos rejuvenecia-se, apequenenávamo-nos a cada passo, mas tínhamos os dedos meus nos seus nascidos gêmeos siameses.
      Meus mamilos ardiam ao sol e sua saliva amainava a brasa. Era um ciclo bonito passar meus dedos livres dentro de seus lábios para recolher meu alívio, ou de encontro à sua boca calidecente meu seio tombar e se umedecer. Você era um refúgio tecido de frescas begônias.
      Ao sermos arfantes, repousávamos nos grandes lagos que escorriam do útero das árvores. Dois seres pequeninos e luminosos afundados na doce gelatina arbórea. E era ali, entre as folhas e penugens, que nossa membrana rompia-se fazendo-nos aglutinados e, livres da matéria, éramos mais intensos, éramos eu, você e lago num único tempo. Depois dessa pequena morte, compunha-nos de novo para seguir jornada, um quase voo ébrio; e para a nossa visão a floresta abria-se em cores outrora desconhecidas, os pássaros acima tinham fortes tons azuis que demoravam-se roxos, grenás até desaguarem no vermelho mais vivo. As copas balançavam-se salpicando todas as tintas, nós ríamos, devaneados, da música colorida a inebriar a selva. E bailávamos, correndo sempre, menores e menores a cada salto, tanto diminuídos que, de baixo, acenávamos aos insetos, tudo agigantava-se num piscar que chegamos à pergunta de que sumiríamos n'alguma poça oceânica; e nos concluímos felizes.
      Ao nos depararmos com uma lagoa rosa-azulada vinda dos anéis de duas árvores imponentes, decidimos nela desaparecer. Mergulhamos os pés, em harmonia, que derreteram-se em contato com a água. Nós dois nascidos ligados, a soçobrar os corpos como se descasca fruta.
     Misturamo-nos polpa carne seiva cabelos e veias; e morremos infinitos.   


Imagem: Across The Universe - Julie Taymor


sábado, 29 de maio de 2010

História obliterada da mulher que é mulher ou Apelo Discursivo

Quem come sou eu!

                                        




                                                 ("I have the pussy, so I make the rules")

sábado, 15 de maio de 2010

Puedo escribir los versos más tristes esta noche*

1.
Foi na banheira, essa coisa nada cotidiana, dava tempo pra refletir, ás vezes sobre o dia, ás vezes sobre filosofia, ás vezes sobre a própria vida, é quando se chega a todas as conclusões mais fundamentais, na banheira quase esquecida, essa coisa de luxo ou de livros, imerso nos vapores adocicados, com as pontas dos cabelos boiando na espuma, vagueando. Foi assim, não se pode dizer que de repente, que constatou sobre os vários cafés oferecidos a ela, alguns textos anônimos tão amargamente dedicados, o tempo embaraçoso, o dizer que de tão meticuloso foi-se parco. Tudo em que ela estava perto, era uma pontadazinha aguda que saltava sem querer, agora sabe. Pousou a mão no rosto, compenetrado. E o que se faz agora quando se sabe? Só o sofrer que ganha algumas gotas de consciência. E olhou no espelho sua forma míope, passou os dedos na superfície pra que se fizesse nítido. E pra que quis desembaçar aquela figura tão feia? Desejou não ter aquele velho espelho, nem espelho nenhum no mundo.

2.
No primeiro dia achou estranho. Quis estar (e fugir sofregamente quando estivesse) com ela. E se a perdia de vista, a procurava debilmente pra depois se afastar. Como um louco, pensou. Repudiou cada colega que se aproximava da mesa dela, pedir uma caneta? Um pedaço de papel? Queriam todos comê-la! Arrancar os botões de sua camisa. Animais! Ele enojava-se. E impregnava de mais e mais claridade a imagem da maior singeleza que lhe tinha: ela era uma aura branca, ela tinha o corpo mancebo, jamais tocado por homem algum. Estava adormecida, eterna e eterna, no alto da maior montanha da Terra. Durante todos os seus gestos ele a estava a observar, a adivinhar onde tocaria seu braço e qual o desenho que fariam os dedos ao discar o telefone. Não trabalhou, estava feliz - apesar de apesar - por tê-la de amor. Amor, essa palavra misteriosa, que guarda todo tipo de simpatia ou paixão e, solerte, segreda toda dor.

3.
No sétimo dia se enfureceu. Tenho tudo dentro de mim a procurar por ela, tudo grita endoidecido de não ser escutado! Como não se pode fazer, ao menos, tangível? Achável, que seja! Uma pequena disposição, nem que brusca, de estar para ouvir, permitir que possa haver! Todas as pessoas tão egoístas, mas eu estou aqui, sem nada que seja meu sem que tenha dela. Como seria possível tamanha forma de se dar? Cabível maneira de existir?

4.
No trigésimo dia sentiu... não se sabe o que. Era tanto saber que já amava, e amava só, que pensou ser a única criatura viva que se sufocava nesse mar que não conhecia, um mar que tem muito de solidão e um muito tanto de crueldade, se não se sabe se está fundo ou na beira, se o mar é um mar amarelo ou anil. Ou se ela também navegava, se poderia... Decidiu sair à rua, caminhar, ver gente. Mas é justo nesses dias que parecemos estar numa novela. Só encontramos casais, moças e velhinhos felizes, românticos. As mãos dadas num cúmplice dizer, que esta é a extensão do que sou, olhe: achei outro de mim, meu agora e de sempre. E parecem apontar-lhe com os olhos a sua exclusiva infelicidade. Irritou-se, voltou às pressas. Encheu um banho muito quente pra repensar. E teve pena de si mesmo.

5.
No quinto ano, seu sofrimento já era há muito uma parte fixa. Já nem chamava assim, com essa palavra boba e seca. Não tanto um sofrer, senão uma bala metálica introduzida no corpo por um disparo vagaroso. Convivia-se muito bem. Só ás vezes era preciso mudar de posição se a bala doía um pouco. Nas vezes em que o final de semana era ausente dela, digo, forçosamente ausente, se se tornava tão atordoante pensar os cortejos prováveis, os cafés que ela tomava que não eram pagos por ele. Mas não ligava, fingia.

6.
No sexto ano quis mexer com a introspecção repentinamente. Oferecer um bolo, convidá-la a sentar-se. Ela não o morderia. Talvez fosse influência daquela cena do filme, não se sabe. Nesse dia tudo nele era êxtase, tudo pulava numa alegria infantil, nostálgica. Ele começara a falar (falar, meu Deus!) sobre mais que o dia tedioso na empresa ou o clima. Arriscou-se a traduzir um pouco de como a beleza dela irradiava, sem mostrar-se um vil. Ela confessou sua surpresa com um sorriso isento de hostilidade. E tudo nele era música e uma dança natural. Em outros dias conversaram, cada vez mais sobre um e outro e menos sobre "o que" ou "como". Meses. Até ele sentir - algo que não pôde explicar - que a pontada aguda, aquela coisa misteriosa, que era uma incrível forma de se dar, aquele mar que sufocava cheio de palavras bobas e secas, tudo precisava ser dito. E com algum pesar (mãos trêmulas e coração diminuído) o fez, de voz quase sumida. Mas... mas? Mas ela não poderia navegar. (É, o Walter, sabe? Nosso colega, já tem algumas semanas, pois é.)

7.
Foi na banheira, essa coisa maldita e obscura que é a banheira, que os braços pendiam inamovíveis. No espelho ao lado a rachadura trincava do início ao fim, formava uma bola, olhando daqui parece uma rosa estraçalhada, o miolo é aquela mancha vermelha. Só os braços pendiam e gotejavam ainda, os braços pedintes, rogando um amor que nunca tiveram, um amor tão casto quanto pobre, tão mais puro quanto mais irrealizável, dentro daqueles braços duros de nunca ter havido mulher. E na banheira boiavam textos anônimos, cartas e cartas molhadas, papéis desmanchando-se aquosos, versos embebidos de sangue, todos ali, imersos naquele mar solitário (nem amarelo e muito menos anil) onde seu corpo, frio, inalcançável, perdia-se, afundava-se, cada vez mais, e mais. 


E. J. (14/V/10)


*Verso de "Um poema-canção de amor desesperado" (Vinicius de Moraes)

quinta-feira, 6 de maio de 2010

Breve Consolo aos encantados (prefácio)

- Porque a minha "Literatura" não partilha de nenhuma relevância ou brilho superior. Falar de si mesmo e alcançar o mundo é tarefa de gênios. Mas não tenho, como Nassar, uma horta para me ocupar (ignoro técnicas de plantio). Tenho essa coisa furtiva que a modernidade permitiu, por isso não paro, é só pausadamente que estou a tecer essa linha silenciosa que tu visitas de quando em vez, "meu igual, meu irmão".

domingo, 11 de abril de 2010

Eurídice e Orfeu

"Solidão, que poeira leve"
(Tom Zé)


E você derramou pelos dedos todo aquele fel de quem vai e vem, como um véu azul-límpido.
Eu, Eurídice, lacrimosa e pulsante, você era a música a conduzir-me do Hades.
Você sustentou esses olhos de lástima nos meus, mas é quase insuportável prender por tanto tempo assim, é quase loucura, é quase perdimento. Eu não pude, não pude, juro.
Porque os olhos são sempre feitos de pedra castanha, por vezes tingida de tons coloridos. Suas pedras diziam que me levarias pelo caminho.
O desconsolo daqueles minutos era um deus revoltado dentro de mim. Mas voltei-me para deitar-me em teu sêmen, e no cheiro de outras maçãs apodrecidas recostar o corpo agora só.
Eu emurchecida, a preparar um banho quente, a borrifar novos perfumes (que não me façam lembrar que jamais poderei esquecer-te em tuas partidas).
Você, uma razão maior, um desafio, um pomo que florece em meses primaveris.
Segurou minhas mãos para colher-me,
Acabou por levar minha flor maracujina.
Você artesão, você meu.
Meu ponto de certeza na história,
Você Orfeu.

domingo, 28 de fevereiro de 2010

Parque


Havia Marina. Uma menina de corpo leve e palavras francas. Deixou-se descobrir outros valores. E havia o sonho. Aquele cujas mãos brotavam das costas dela, crescendo sobre seus peitos. Do seu sonho Marina perfurava os olhos para entrar e nunca mais sair. Em cima dele ela cavalgaria eternamente em direção ao paraíso.

Havia Lúcia. Um pedaço rosado do céu. De sua ingenuidade nascera uma pitanga viva chamada Amor Verdadeiro. Ela é a única que sabe cuidar e quem um dia teve o leite empedrado e ardido e, mesmo assim, continuou. Lúcia só sabe dizer verdade.

Havia Ismália. Ela tem todo o céu, mas vai comendo-o em pedaços muito pequenos. Ismália sabe muitas coisas, quando ela diz você pensa: queria tê-lo feito. Até mesmo seus beijos (diários) são estreitosapertados, não se vê passar vento por eles. De mãos no queixo, oferecemos nossas bochechas.

Havia Júlia. A flor selvagem trepada aos portais. Parece contundente, de pétalas austeras. Sonha ser arrogante quando crescida. Me disse coisas bonitas e me disse coisas feias, mas ela se faz ser mesmo gostada por muita gente.

E há um parque - onde todas as meninas rodopiam carregando bonecas de cores diferentes - num ponto secreto da eternidade.