quinta-feira, 17 de novembro de 2016

Há dias procuro uma agenda velha, cheia de manuscritos, nada acontece. Entro em desespero. Tenho pressentimentos terríveis toda vez que penso em seu acabado sumiço. O que havia de mais "valioso" era a lista completa de todos os livros que li, desde a infância. Os tempos verbais me preocupam, como se a perda já fosse certa. O nome desta sensação é pássaro-negro-observa-da-janela. Apanho o caderno da lista de sensações.
Há dias prevejo a tormenta de esquecer o curso de minha história, a que se passa por trás das cortinas. É uma história segunda, mas é igualmente um grande pedaço de tempo que, arrancado, tira o norte de tudo (como se descolam rios que se encontram?). De repente, não sei se guardei quem eu sou na minha memória ou se precisava anotar em listas também. Talvez, as minhas listas guardassem a minha verdade e nunca descobri, até este momento, o verdadeiro propósito infundado de não esquecer. Perder o que sei dos meus livros é como perder o que sei de mim. Porém, penso que se esqueço boa parte dos personagens, se eles se misturam e trocam de lugar mutuamente, se eles riem de mim, devo estar desistindo da história linear da vida aos poucos. Preciso de uma linearidade, mesmo que forjada em anotações cronológicas. Quantos poemas-possibilidades morrem com o desaparecimento de um caderno esgarçado?
A pessoa que olhou aquelas páginas antigas, folheou coisas disparatadas e concluiu que nada valem, atestou, sem saber, que o curso de uma vida não vale uma folha voando no tempo.


segunda-feira, 19 de setembro de 2016

A primeira vez que a Maria deixou-se beijar foi por um dos pescadores. Sentiu um amargo que não era um amargo de boca. Um homem que era homem demais. Embora ele fosse cheio de pressas, a Maria queria conhecer seu sabor. As pessoas se beijam, abrem as bocas umas das outras e entram com tudo dentro, parece que aguardam o céu. As mulheres da praia faziam cara de um nojo dissimulado, enrolando os cabelos, os pescadores faziam cara de quem é besta. Desse modo faziam suas coisas de adulto.
Um dia, ela, a Maria, que nascera livre, se misturou com aquelas mulheres e foi escolhida através de uns gestos sutis e ridículos do Adamastor. Ele esfregou-se na Maria com tanto desejo que ela sentiu verdadeiro nojo. Ficou sem saber se havia beijado ou se fora beijada. O Adamastor tinha rudeza nos braços e medo nas palavras. Ela contava 14 anos, ele, 41. Um homem parecia afinal ser uma pedra do mar, esmagaria um peixe miúdo como a Maria sem muitas dificuldades. Pelo desprezo que lhe foi crescendo ao vê-lo como desesperado, ela pensou que o homem era uma pedra de sal, basta que ponham-lhe água a correr por cima, acaba-se. A Maria pensou que as mulheres eram água.
Adamastor, pele viscosa, boca salgada, ideias frouxas. Chegou a pedir que a Maria viesse morar com ele. "Para quê?". "(...)". "Adamastor, eu perguntei para quê você me quer morando na sua casa se tenho eu a minha. Que farei eu lá?". "Para que você tenha uma vida, eu pensei..." "Eu tenho uma vida, não vê? Sou gente! Que me falta?" O pobre homem tremelicou e não soube dizer mais nada. A Maria deu por acabado.
Depois desse, vieram outros homens dos quais sentia a mesma pena, abria-lhes a boca sem muitos sentimentos, apenas por curiosidade. Mas estava cansada. A Maria, órfã do mundo, era dada como perdida. Perdida de que modo? Estava bem encontrada, pescava, comia, limpava, nunca havia saído da praia, não era possível entender. Diziam impiedosamente que a Maria, por não saber de pai nem mãe, havia chegado naquela ilha ainda criança, enredada numa espécie de jangada mínima cheia de farrapos, guiada pelas ondas. Pois perdida eu era antes, respondia para si mesma.
Uma vez, um dos homens, ao beijar-se usando a boca da Maria, tentou enfiar as mãos grandiosas dentro de suas saias. Ela o achou esquisito e, sem nenhum porquê a mais, mandou que fosse embora o mais rápido que pudesse. Ora, já bastava de coisas sem sentido. Beijar aqueles homens era como o pensamento que passa pela cabeça nas horas laboriosas, uma coisa vazia. Ele saiu assustado praguejando, chamou-a de nomes que ela não conhecia.
Depois de tempos, que para a Maria já não contavam, aportou um barco distinto na praia. A Maria acabava de erguer sua cesta abastada de pesca quando notou um ar de incompreensão. Do barco, tão grande e vistoso que não se soube que nome realmente tinha, saiu uma criatura de outro mundo, todos pensaram atônitos, um ser que tinha aparências de mulher e jeitos e roupas de homem, uma face corada de anos além-mar, o corpo forte e pequeno como um dia de sol chuvoso, sustentava calças e camisão fresco debaixo de um chapéu de abas enormes.
Quando avistou a aldeia, precipitou-se acenando com ambas as mãos, as pessoas se entreolharam buscando na memória alguém que se assemelhasse àquela criatura. Nomi pôs-se a acenar com o chapéu, deixando liberta uma longa cabeleira castanha. Ouviu-se um suspiro de quase alívio, alguns tiveram a certeza de que se tratava de uma mulher e acenaram, tímidos, de volta.
A Maria, muito meio intrigada ainda, colocou sua cesta na cabeça e foi para casa com aquela visão, tinha ela sua vontade de acenar também, o brilho irradiante daquela... pessoa, era uma pessoa linda.
Com o passar dos dias, criou-se ali larga história desvairada para a origem de Nomi. Diziam que ela era uma coisa de mundos obscuros, de lá onde o mar acaba, formando o abismo. Apesar dos cabelos e estatura quase atestarem seu sexo, era impossível precisar se sua silhueta correspondia a um corpo feminino, as vestes de Nomi eram sempre largas, quando ela rodava pelas ruas da feira, cada um perscrutava uma parte sua com fins de chegar a um veredito. "Hoje ela se inclinou para medir minhas frutas e quase-quase percebi." "Desisto, há panos demais." "Eu já disse, note o queixo". Os feirantes resmungavam com certo grau de despautério no final do dia, entre as cascas de fruta e restos de peixe, cada vez mais confusos e ignorantes. De sua banca, a Maria pensou que afinal não era ela o assunto. Diziam que Nomi era fruto de uma feitiçaria, enviada para confundir tanto as cabeças até desmiolar a todos, uma praga feita pelo filho da Yolanda, aquele maricas que fugira. Alguns arriscavam com hipóteses convictas de que se tratava de um anjo, e anjo não tem sexo. “Impossível!” Retrucavam. “Onde estão as asas?”. Ninguém sabia dizer por que ela estava ali, nem o que fazia, nem quem era, mas todos estavam tomados de tal pânico que a simples ideia de perguntar passou longe da ilha.
Bolaram o plano de espiar Nomi no banho, todos os dias ela acordava de sua sesta com mil olhos esbugalhados na janela de sua embarcação. Começou a cansar-se de tanta especulação. Começou a cansar também a sua gentileza. Levantou-se mais exaurida do que quando se deitara, uma fresta luminosa que vinha do teto cegou seu olho por um segundo. Nomi sacudiu a cabeça.
Na feira, os olhares de sempre, serviu-se de tangerina, sentada num caixote. O vendedor mal olhara em seu rosto, mais um sorriso inútil. A brisa misturava os fios de seus cabelos aos gomos da fruta, ao virar-se para trás, lá estava a Maria a olhar longamente o movimento que o vento desenhava nos cabelos de Nomi e, flagrada, corou. No interior de ambas surgiu uma dor de alegria inesperada. Era a lagoa cristalina no meio do deserto e Nomi tinha tanta sede. Aproximou-se para olhar os peixes da Maria, postas prateadas cintilavam na mesa. Elas trocaram palavras invisíveis e souberam no mesmo instante, havia uma redoma de ternura naquele encontro.
Por isso não puderam perceber como todas as bocas se abriram, como todos os olhos se arregalaram, o riso cruel das crianças mais velhas, o escárnio das mulheres e o ódio dos homens. Não perceberam, deram as mãos e seguiram.
Depois daquele dia a Maria amanheceu vivaz, a vida vestia outra cor. Nomi reacendeu o sorriso e pôde suportar melhor, contou que queria rodar o mundo inteiro, planejaram viagem. Amaram-se. Tudo em Nomi era diferente, a Maria precisou aprender o que era boca, mão, pernas, o que era corpo. Aquela mulher, maltratada pelos braços rudes de tantos homens, amou. Amaram-se demoradamente, como quem regressa do exílio.
Uma das noites estendeu-se tanto que trouxe o dia. A Maria perdeu seu horário de pesca, mas não lamentou, tinha muita felicidade. Levantou-se para receber o sol, e finalmente entendeu porque a chamavam perdida, era que durante todos esses anos estava apartada de Nomi. 
Seguiram as duas para o ritual matinal da feira e tamanho foi o espanto. A banca da Maria tinha sido devassada, ela enxergou pela primeira vez os olhares de repulsa. Mas era a gota que faltava no cálice de dores de Nomi. A cólera e os gritos foram breves como um raio. Bastava. Atiçara cães famintos. Foram surgindo pedras e armas improvisadas, o espetáculo estava quase pronto. A Maria tentou lutar contra quem as afastava como um afogado que engole cada vez mais água, exauriu-se, perdeu os sentidos, jogaram-na como fruta podre nos braços da praia. 
A Maria, que nascera livre, acostumada com o correr do mundo, antes perdida depois encontrada, a dona dos peixes, a dona de si, morria por dentro. Abriu os olhos cheios de areia apenas para cegar-se com a luz inebriante que subia ao encontro das nuvens, ela jura e conta até hoje, dois espíritos brilhantíssimos flutuavam a cima dos homens, da carne e do ódio; haviam se desprendido do corpo inerte de Nomi e subiam entrelaçando-se para o infinito.
                 

segunda-feira, 29 de agosto de 2016

E agora, Dilma?

E agora, Dilma?
O sonho acabou
O riso parou
Democracia ruíu
Justiça estancou

E agora, Dilma?
E agora, mulher?
Você que tem nome
mas se alia a outros
Você que faz certo
mas erra na trave

E agora, Dilma?

Está sem apoio
Está sem promessa
Já não pode temer
Calar já não pode
Renúncia, jamais
O senado esfriou
O tempo fechou
Mas o Lula veio
O Chico veio
Não veio a liberdade
E agora, Dilma?

Sua luta indelével
Sua garra, sua bicicleta
Sua resiliência
Seu anjo esbelto
Sua perda - e agora?

Se você dançasse
Se você corresse
Se você revidasse
o golpe iminente
Se você recuasse
Se você cansasse
Se você morresse
Mas você não morre
Você é dura, mulher!

Sozinha no salão
qual presa rendida
sem crime, sem pressa,
sem culpa, altiva
Você marcha, Dilma!
Dilma, eu também


quinta-feira, 25 de agosto de 2016

Comecei a extrapolar os sentidos da perseverança
Ando a ver meus amigos que agora distantes
nos rostos das pessoas que passam
Oh me desculpe pensei que era um nome que eu conheço
A pessoa que sequer me viu olha-me com o susto de nascer
É que meus amigos estão raros


Moço, você não sabe que a saudade só é neste país?
Não suporto mais que vejam minha loucura trocada
Não, não. Não é esta a minha loucura. É outra
O homem vai correndo pelo resto de rua

Os meus amigos riem comigo de quebrar os ossos nos meus sonhos
Estou sentindo uma coisa redundante,
Por favor, me liguem




Para Nina, Neldo, Nádia, Joana e Mari


O adulto

O ser adulto sofre de profunda resignação
Este - cujo tempo tem-lhe transpassado o corpo -
passa a carregar um sentido
nunca antes experimentado
nem na mais remota infância
a infância da infância da infância
A palavra acariciada da idade primeira
não alcança.
Falo da fome
O ser adulto sofre de profunda fome de existência
Não sabe de si,
nem da substância que circunda suas vértebras
E esta grande fome de ser sem sabê-lo
remói suas montanhas
Ser adulto é talvez um tiro no escuro
Uma casa repleta de coisas simples mas preocupadas
Uma casa sozinha no topo do penhasco
Um cachorro tão velho que perdeu a alegria
Uma coisa sem princípio nem encerramento
O ponto do meio das reticências

sexta-feira, 17 de junho de 2016

Se você encostar o ouvido em meu peito
talvez perceba o abismo

Se você perceber o abismo
talvez queira
saltar boca adentro

Se você encostar o ouvido em meu peito
talvez


segunda-feira, 23 de maio de 2016

Notas para apascentar as instâncias mal acamadas do ego

Ser sempre gentil com todas as pessoas não significa ter nos eixos o senso do correto. Gentileza é, antes de tudo, um recurso de boa convivência, o gentil pode ser o bondoso como pode ser o pérfido à procura de atingir seus fins. A simpatia e a gentileza são graças se assim forem gestos sem meios, sem culpa, sem finalidades ocultas. Seja gentil diante do possível.


A caridade não necessita alimentar-se a partir de vínculo profundo com a religião.


Ter a verdade como impulsionador, não como objeto de domínio. A verdade não pertence. De cada uma de suas frestas espia um par de olhos, há 7 bilhões de frestas conhecíveis na casa da verdade.

segunda-feira, 2 de maio de 2016

Para que eu possa verdadeiramente escrever
devo imaginar tudo diluir-se pelo universo
toda a poesia desprendida do útero
sem chance de retornar
a ir-se

Os olhos comedores de tudo
em cima dos meus escritos
revirando as esquinas do meu corpo

Porque escrever já é mais que estar
simplesmente despida

Escrever é como ser puta.

terça-feira, 23 de fevereiro de 2016

O poema
A tatuagem
Para ambos há uma pergunta ilógica:

"Qual o seu significado?"

A arte não é para fazer sentido,
É para fazer sentir.

Que novidade há nisso?

sexta-feira, 15 de janeiro de 2016

O amor não é temeroso
Mas há noites em que estremeço.
Tampouco duvida, se acaso fizer-se escuro
um dia muito claro
Mas eu sou um barco que só transporta perguntas

O que me põe comovida não é o amor
de que sinto
talvez uma parcela.
É a minha humanidade
Estas pequenas e enormes incapacidades
de sentir sem pensar.

O paraíso não é deste mundo.