domingo, 4 de dezembro de 2011

Amaria

Maria tem madeixas pretas que me encantam.
Ela deve de ter os cabelos mais longos da cidade.
Maria tem cílios de boneca
e malêmolengos de cigana doida.
Maria tem a penugem ruiva
do meu pomo preferido.

Ora direis falar besteira.
''Aquela Maria não tem carnes boas,
nem peles de casca de fruta.
A boca não chama nem acusa.
Nomeias madeixas
aqueles fios engordurados
num coque tosco acima da nuca?''
Tresloucado! Me chama.
''Esta Maria é uma velha manca!''

Ao diabo!
A minha Maria é tão boa aqui dentro...
É vem Maria caxingando tão bonito...
Tem a cabeça mole e o coração profundo e macio.
Só eu sei como é bom amar Maria...
Eu e Maria no mar.
Eu e Maria.

sábado, 3 de dezembro de 2011

Quasindagação

Minha cabeça dói e meus olhos ardem. Tenho certeza de que isso não vai ser um bom texto. Textos escritos com vaidade - e casacos de pele - não são bons textos. Eu pus o búzio - e não concha - no ouvido porque eu quero ouvir o mar. O mar é imenso - eu sei - e eu não mergulho, eu ouço porque parece que foi feito pra isso. Parece. O mar também tem cheiro. De fora, os sentidos embonitecem. Tenho vontade de dizer O que significa isso? Tenho bastantes vontades exiladas. A minha mãe - que não é sábia - me ensinou que a vida não é um parque. Então não se pode simplesmente ir tocando no ombro e perguntar O que você quis dizer? Isso estraga. E talvez não se goste da resposta. O fato é que é muito fácil cair-se bobo por uma metáfora. Tive muito caso de amor com poema, mas eu sei - embora não saiba - que todo texto é maior que o fazedor. Que importa, Dalton? Todo mundo sabe que dói e mesmo assim cai de amor. Eu sei que cervejas infinitas fazem doer no outro dia, e eu bebo. Existem dores que já estão catalogadas. O negócio é escolher.
É assim que se faz quando se pretende ser direto.
(O mais direto dos poemas é aquele que emudece.)

domingo, 20 de novembro de 2011

Ellen. Cap. VII, v. 4 - 35

Estava Deus a passear à beira do lago leste do firmamento, altivo e curioso, perdido nas profusas vias da meditação. O pousar os olhos no lago, de tão diáfano, fez suscitar nos pensamentos divinos vontades de criar o ser mais belo entre os belos. Pediu então auxílio às arcanjas, que apanharam um bocado da nuvem mais rosada e Deus modelou o corpo de mulher mais lindo do céu e da terra. Deu-lhe franjas muito lisas e pôs perfume em todas as dobraduras, entre as coxas fez brotar uma flor de açúcar e pingou duas gotas e meia de mel em cada olho.
Por fim, orgulhoso de sua criatura, disse-lhe: "mulher, quis experimentar meus melhores dons em ti, não desperdice-os. Reconheça-se sempre agraciada da maior beleza e faça dela teu baluarte. Não te precisas demorar nas faculdades pensantes. És perfeita. Serás chamada Jacira". A mulher fez cair suas duas primeiras lágrimas de emoção e encarnou a 3 de maio de 1784 no Rio de Janeiro.
Deus orgulhou-se ainda mais porque esta safra de belíssimas mulheres deu lastro à escola literária romântica no Brasil. Mais tarde, lamentou vagamente a culminação do movimento num exagerado ideal de beleza feminina, ideal inspirado sem dúvida em sua própria criatura. (conta-se que um destes doidos do século XIX, ao passar pela Rua do Ouvidor, avistou Jacira descabelada a abanar-se com as saias e de seu alumbramento nasceu um romance prestigiadíssimo sobre uma mulher de atributos sobrenaturais.) Sabe-se, porém, que este era verdadeiramente apenas um ideal, tendo em vista o assassinato de Jacira em 1820, único ser arquitetado inteiramente nos céus.
Deus ainda hoje conta, entre risos, que desde Cleópatra inventa-se todo tipo de artifício para forjar uma beleza celestial no rosto das mulheres, é sabido em todo o firmamento que isto é impossível. Deus, por certo, muito preocupa-se com este empenho da humanidade em obter encantos superiores, empenho que Ele considera aterrador, uma vez que o gênio é cada vez mais esmagado em prol da riqueza do corpo. "Os seres humanos estão a engabelar-se, minhas filhas. Enchem-se de inutilidades, morrem de maneira frívola por acreditarem na imortalidade do belo."
Uma das arcanjas, que está a ouvir as divagações de Deus, chega a questionar-Lhe, ali prostrado naquele mesmo lago azul, quanto às suas ordens dadas a Jacira antes da encarnação. Deus para, um pouco consternado, coça a longa cabeleira branca e responde: "Aqueles parvos conselhos me são o arrependimento mais amargo da vida. Pudera Eu apagar aquelas tolices e talvez não se tivesse feito este estrago inconsolável. De onde tirei Eu a ideia de beleza como baluarte não lhe posso dizer. A criação de Jacira, além de causar-Me terríveis dores de cabeça, serviu apenas para alastrar injustiças pela Terra - salva-se somente aquele romance, cujo nome não Me recordo. Mas tu bem sabes que Eu também sou criatura do tempo, não posso movê-lo."
Como que adivinhando o pensamento de Deus, as arcanjas suspiraram em conjunto: "Pobre Jacira!"

sábado, 29 de outubro de 2011

Você diz que
eu não deveria ter feito
minha tatuagem
Mas a minha tatuagem
é de dezoito anos
É kitsch mas é simbólica
Que grande bobagem é,
não acha?
Grande bobagem minha
é usar meu corpo
(que nem é meu)
Minha tatuagem é boba
e tem traços finos
muito bem feitos
e é colorida.
Você disse que eu não
deveria tê-la.
Eu acho que eu
deveria ter preenchido
minhas costas
com um desenho psicodélico
Mas eu tinha só 18 anos.

sábado, 22 de outubro de 2011

Meditação sobre o ofício de não-criar


Sabe. Tenho pensado que eu não presto  para isso de escrever. Veja bem. Primeiro de tudo: sou mulher. Segundo de tudo: sou mulher e otimista. Não tive experiências grotescas nem tanto desoladoras. Não inauguro nenhum estilo nítido. Não faço nenhum registro histórico.
Nem crítica, nem filosófica, nem dantesca, nem intimista o suficiente ou quase nada. Não penso em suicidar-me. Não acredito que não haja romance. Não sou melancólica, nem desencantada em alto grau. Não aprecio o uso de drogas. Costumo pentear o cabelo. Não que eu não seja aluada, sobretudo diante de coisas imprescindíveis, mas todos os meus vocativos têm por nome Amor. Sou feliz em demasia. A latente falta de sentido não me é angustiante. Tudo na vida é muito besta. Além do mais, sou monogâmica. Além do mais - além do mais, não sei intitular as coisas que me saem mais bonitas e meu nome é tão feio que nenhuma travesti quereria adotá-lo.
Sabe. Eu presto demais para me dar a escrever. Aí você veja, pra que mais meia dúzia de livro feito de sem-gracice?
Você quer saber o porquê? Você quer mesmo saber porque diabos não se escreve e pronto e cabou?
Ora, porque eu leio.
E lacrimejar piegas é comigo mesmo.

sexta-feira, 7 de outubro de 2011

"Essa necessidade de fluir, ah, jamais, jamais parar de fluir. Se parar essa fonte que em cada um de nós existe é horrível. A fonte é de mistérios, mistérios escondidos e se parar é porque vem a morte."

Clarice (Um sopro de vida)


Há uma certeza que sobrevive na porta dos fundos de minha cabeça. E penso guardar este pássaro de alegria num campo para refugiados.
Ouço... ouço pequeninas vezes meu ilustre sobrevivente, tem a vozinha minguada: "A poesia nunca morre dentro da gente."
Diga-me... diga-me com toda sua força: isso é mesmo verdade?

quinta-feira, 6 de outubro de 2011

Isto é uma crise, Osvaldo!

Tenho obrigado-me (sem nenhuma veemência) a praticar exercícios de escrita e literatura. Não gostaria de ser mais um metapoema na vasta inscrição do contemporâneo (blár), mas tenho pernas que não sei para que servem, íntimo comando, íntimo comando. Quase nenhuma gente poderá compreender uma crise nassariana. Verdadeiras obsessões nunca serão compreendidas. Eu escrevo. É como um hino. Eu digo: eu tenho história. Isso é belíssimo, subversivamente belíssimo e leviano. Quem acaso disse-lhe: você escreve? Você responde: Deus! Uma crise é uma crise é uma crise. Tem a palavra oscilante guardada dentro. A minha linda professora disse. A minha linda professora possui importantes critérios que eu não estou certa se foram inapelavelmente aplicados. Tenho 22 anos e 22 poemas publicáveis. Você toca-me a alma no mais fundo que a minha alma tem. E eu não digo que há alma rasa como quê. Tenho praticado bastantes desperdícios, como pensar sobre o próprio pensamento. Precisa-se de um novo vício para dar adeus. Preciso parir meu vigésimo terceiro poema. Eu escrevo como quem dorme.

domingo, 2 de outubro de 2011

Estive pensando em você desde os meus 18 anos de idade.

Estive pensando em você
desde os meus 18 anos de idade.
Estive pensando nestas últimas
horas sobre como flores emurchecidas
trazem uma profundíssima tristeza.
Bobagem.
Estou pensando agora que
você aprisionou todos os meus versos.
Eu não me importaria se você
os engolisse todos vivos
Desde que
comemo-nus pelos restos da vida.

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(Óh!) Penso que matei aquelas flores
de inanição.
Pus-me muito triste a
pensar
que elas choraram
a morte umas das outras.
Penso que perdi
meu ouvido mágico.

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Se todas as flores do mundo
forem aniquiladas,
posso perfeitamente
inscrever nosso amor nas pedras.

quinta-feira, 18 de agosto de 2011

O Livre Serei


Será belo
Será pleno
O dia em que livre 
serei
E terá a tristeza das rosas brancas
que nascem puramente 
para a solidão

Será um parto 
inequivocadamente
cheio de suas dores
e cheio de suas festas

Meus dentes ficarão confusos
Mas minhas mãos irão reunir
toda a pertinácia recolhida
dos meus sonhos infantis

E anseio com toda a força
de minha comodidade
que o laço não sangre tanto
quanto o rasgo nos meus olhos
despertos para a liberdade

Será belo
Será pleno
Será...

quinta-feira, 21 de julho de 2011

Se você gosta de Paulo Coelho, não leia isso.

Não sou Ezra Pound. Não sou gênio. Não sou escritor. Mas eu escrevo. Tudo o que vou dizer desgastou-se. Algumas pessoas irão se enfastiar com esse texto, outras acharão respaldo para divagações pessoais. A função 'escritor' carrega em si uma pretensão desculpável. O escritor quer mostrar-se a si mesmo e ganhar muitos prêmios com isso; um atestado de arrogância que tem como resposta a grande admiração dos leigos e o respeito dos intelectuais. Afinal, essa forma perspicaz de se buscar a imortalidade enriqueceu o mundo de conhecimento e é louvável.
Costuma-se não acreditar na existência de escritores de bestsellers. Eu acredito na existência de fazedores de bestsellers. Existe uma condição definidora da essência da obra de arte: a intenção. Se um homem visa dinheiro e pensa que é regido pela vocação 'escrever', usando de toda a potencialidade de sua inteligência, ele buscará os melhores artifícios para fazer um livro. Este homem produzirá um bestseller. Um produto "vendável", como se sabe, precisa ser construído com uma linguagem de fácil apreensão e mais alguns elementos de obviedade. Tem por finalidade entreter, distrair, suavizar as tragédias cotidianas, fazer esquecer, emocionar. Traz um enredo estilisticamente imbricado e sem profundidades, porque profundidade cansa o leitor. MAS. Se um homem é movido por uma estranha necessidade de expôr a própria subjetividade, fazendo-o com primor, ele é um artista. A depender do contexto, ele tem plena consciência de que não poderá exercer exclusivamente esse ofício. Poderá vender bananas ou se tornar farmacêutico, pois o homem vive primeiro de pão.
Dizer-se que fulano é um péssimo escritor é o mesmo que dizer que fulano não é um escritor. Dizer-se "escritor excelente" constitui uma redundância. Sabe-se da ocorrência de muitos que foram execrados em sua época. Trata-se de excentricidade mal compreendida, o conhecido fenômeno do homem-fora-de-seu-tempo. Estes seres são os únicos a quem podemos chamar imortais sem a cautela dos indecisos. Do outro lado encontram-se os rechaçados por conhecimento de causa. Para certos fazedores não há escapatória. Os entendedores percebem facilmente a tentativa fajuta de domínio da linguagem. Fazedores não sabem desvirtuar clichês, pelo contrário, agarram-se a eles. Copiam porque é simples e por não terem assimilado as ideias do antropofagismo. Um fazedor jamais poderá entender o conceito de 'difícil', ele repudia-o, pois todos têm medo daquilo que não conhecem. Essa é a categoria dos espertos.
A grande diferença entre o escritor e o fazedor é que o escritor é justo com seus leitores, exige-lhes o máximo, não subestima-lhes. Há uma relação de interdependência que mais tarde acaba no total aniquilamento do escritor, quando isso acontece, ele precisa aceitar porque no final tudo acaba bem. O verdadeiro escritor sonha com o nascimento universal de um sétimo sentido: a percepção para a invisibilidade da beleza contida nas coisas. Essa é a categoria dos honestos.
A diferença definitiva é que o escritor deseja secretamente que um dia expurgação dos sentimentos íntimos valha milhões, por isso ele é um ingênuo, quer alimentar o povo sem que o povo lhe estenda as mãos. Um pedante, um incomum. O fazedor ama a banalidade. Não se culpa pela alienação das pessoas. Quem o culparia?
O fazedor acha bonito escrever. O escritor acha sublime, por isso sofre.
O fazedor é como o ganso criado por homens que pensa ser homem. O escritor é como a flor que nasceu nas pedras: destoa e seu fardo é imenso.

sexta-feira, 20 de maio de 2011

Meu amor,

Onde não há você, meus dias não são dias. Eu te amo com todas as forças que posso ter no coração. Na minha casa há tanta desimportância, aquela estupidez rotineira que me cansa desde os primórdios, mas você - a sua simples aparição - livra-me destes dramas. E há cura, há dulces rosas avermelhando-se e há paciência onde há seus olhos. Você não é minha neblina porque todos os nossos dias são claros. Deve de ter muito infinito assim dentro para se amar dos cílios aos perdigotos.
O que quero dizer, amor, é que a sua calma, a sua feliz forma de pôr os olhos no mundo, a sua insigne inteligência são meus antídotos. Resgatada do Hades, brincamos dias de júbilo e nascem luzes cristalinas. A ambrosia do seu verbo é o embevecimento mais bonito. Eu sou tão feliz, meu amor, que a minha tristeza é somente a ausência de suas mãos.

Assim que eu puder, vou comprar uma lata de pêssegos, e catar aquelas flores-do-mato brancas que são tão cheirosas. Vou perfumar os cabelos e pôr seu vestido preferido. No rosto, nenhuma pintura, apenas a sua espera esmorecida fará belo meu semblante. Pelos meus braços estendidos, entenda, é que a minha paixão renascida quer reencontrar-se.
A você, que é minha razão maior, eu nada peço além. Lembra só que amor vem de amor. Lembra baixinho e vem pousar seu sono tranquilo entre meus seios. Promessas são espíritos do ar, amor. Eu amo você e Nunca vi um futuro mais bonito.

quinta-feira, 21 de abril de 2011

Personne


Creia, senhor! Isso é uma figura autoral. E tão distante está...
A realidade é como o brilho tardio das estrelas, uma poça esquálida que nem digno reflexo nos oferece.  Mire-se nestas águas pálidas, a sua quas'imagem é puro vento no deserto, ninguém vê e lá está, isto é realidade.

Esta menina, tão fraca e lesada, pirilampozinho vermelho, acha que se nasce para coisa que se diz Amor, tolo engano é tentar traduzir a imensa maldição dos seres, Amor... e pena em versejar, Açucena desgarrada, ridícula e néscia. (Ela não está sozinha, embora seja só)

Cresça para além das redondilhas, senhor! Meu corpo, apenas veste, minha palavra, lúdico artifício.
A pessoa ainda não há para que lhe possa dizer sobre.
Isso é uma figuração.
Creia, senhor!

quinta-feira, 7 de abril de 2011

Pirlimpimpim

Feliz daquele que acredita na esperança
Não sou triste nem alegre
Sou uma poetisa criança


Eu, aos 9 anos de idade

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Precisas voltar aos tempos ingênuos em que a literatura era pura emanação despretensiosa. Sem referências, sem hipocrisias, sem plumas e só pedras preciosas. Reverter o curso e voltar ao útero quente de mãe, onde não há pensamento e não há consciência, às rimas pobres que são despreocupadas, que não querem se ocupar de tocar âmagos e resistem silentes no baile monótono das palavras (embora cada uma delas tenha mil vestidos faceiros). Estas rimas, tuas amigas antigas, te estão saudosas e querem celebrar.
Pensas no tempo em que mal acabaras de aprender as letras e já achavas estar roubando poemas cecilianos, aquele ato bobo, jamais exclusivo, é tão cheio da terna invencionice infantil que as teorias o chamam hoje de intertextualidade. Eras brilhante e não sabias.
Precisas abandonar estes modos miméticos, nenhuma gente suporta mais sabê-los. Estás maçante, és uma pernóstica. A água se lhe escorre da peneira. A criança foge para longe. As tuas personagens entraram em greve. Respires.
A poesia nunca foi pedra, nem gota de bile, nem caule de alecrim, nem tule de seda ou nácar. Não exige aspas, foge dos asteriscos, se contorce de encontro às gramáticas. Ainda é pouco teu grau de desaprendimento. Em se treinando o desapego aristotélico uma vez por dia, há de se obter algum triunfo. Repasse teus mestres: loucos, crianças, putas, empregados domésticos, poetas. E não te embirres pela sensação de repetimento, originalidade é um conceito perdido, ela existe apenas sob a condição de não acreditares nela.
Por uma única última vez: poesia é todo o teu (i)material, as tuas portas todas abertas.
Por isso este claustro - precisas afastar a pilha de livros - este claustro pertence a ti, não a teus versos.


Os poemas têm direito à liberdade.
Não importa quem disse.

segunda-feira, 14 de fevereiro de 2011

Lilás ou Carta para Saulo

Acho que você tem direito de saber. Talvez-talvez tenha sido a fotografia de efeito sépia. Hoje você teceu a minha manhã de sonhos (estes de tantas almas povoados). Você deixara os cabelos por cortar, os cachos descacheados, você tinha um lume de pranto nos olhos, envelhecera, eu via um sol morno na pele do seu rosto, e nenhum colorido, não. Bastou para partir minha surpresa. Posta em meus olhos uma compaixão em tons lilases. Ô, fraterno poeta, que ocorrera que nos desola? Que nos talvez aflige? E percorridos meus dedos nuns seus cabelos gris, te refiz a pergunta. E tudo veio preencher-me em forma de densa melancolia, você nenhuma palavra disse, e me olhou de uma tristeza tranquila. Assim ficamos os dois, brandos num mundo imenso que, se nos está prestes a engolir, nos engolirá (estamos a aprender a serenidade dos anjos), no nosso de dentro repousa uma neblina que pouco a pouco se esvai nos poemas. Se pudéssemos ficar avessos, tanta beleza chegaria a Sara, e talvez se acabasse o nosso enigma de cada um, mas isso é contrário às leis da natureza. Como será duro compreender que a nossa - só a nossa - lágrima semeia os grãos secos da terra do mundo inteiro.
E talvez eu lhe tenha dito ao coração do ouvido Doce cúmplice merencório, a poesia nos irmanou.