terça-feira, 10 de dezembro de 2019

Amiga,

Está uma tarde muito quente, meu bebê mama agora em meu colo. Estamos sentadas olhando o quintal, o limoeiro que cresceu desvairadamente por ninguém se lembrar de podá-lo, ouvindo a conversa dos dois papagaios da família, que se misturam ao verde das folhas. Só há nuvens muito raras nas bordas do céu, com um azul descansado. Uma mangueira velha ao fundo e as duas gatas domésticas ajudam a compor nosso cenário ameno.

Eu desejei, nesse instante, que as paredes do seu apartamento fossem tomadas por plantas frutíferas, como pés de maracujás daquele filme da nossa infância. Você poderia distrair seu bebê com uma das flores mais lindas do mundo, e no meio de tanto ar e pureza, finalmente ensiná-lo a respirar. Mas foi de repente que nos foi arrebatado o direito de controlar certas coisas. Simplesmente, não há. Aceitemos, não sem dor, mas aceitemos.

Agora, transformadas em fenômenos da natureza, estamos mais irmanadas que nunca. Sentimos as mesmas sensações, apesar das distâncias. Mas você está passando por uma tempestade que eu sequer posso dimensionar.

Te escrevo porque é minha forma de dominar o tempo, e quero que você se lembre de que amor é uma fonte infinita de cura. Meu amor por você devassa oceanos e é sempre novo. E esse amor que te abriu em um milhão de camadas irá te ajudar a passar por tudo e sim, tudo passa. Não estamos presas ao presente. Olhe em meus olhos, olhe nos olhos de Nina e depois nos de Mamãe. Olhe longamente se precisar, nós estamos aqui para você, para sempre.

Queria poder te dar todo alívio, muito bem embalado num papel bem bonito, escolhido a dedo, no entanto, sei que já somos milagrosas e criamos, em nosso corpo, seres milagrosos.

Toda tempestade se vai, todo dia renasce, todo ciclo se fecha... e reabre. Você não está sozinha.
Te amo
Até daqui a pouco.

terça-feira, 3 de dezembro de 2019

Paraisópolis

É preciso viver dentro do encanto
permanentemente no encanto que nos seja possível
Só o encanto
- E não o encantamento -
Pode nos suportar na loucura
Só o encanto
É a cura para a aspereza do tempo
Ainda o temos, é preciso crer,
Aqui neste país
Apesar de

Apesar de
Apesar de

A poesia existe.

terça-feira, 12 de novembro de 2019

La loba

Ontem vi a foto de uma mulher política
Com cabelos cortados, coberta de tinta
Suja, humilhada, reduzida
Uma mulher latino-americana
Repito, uma mulher política

Nenhum poema pode me dar
A exaltação das minhas retinas
Uma mulher boliviana
Forçada a se submeter

Uma corja de homens
Homens apenas homens
Firmavam o corredor do abate

O ano é dois mil e dezenove
Uma mulher humana
Desfila sobre a escória

Uma nação queima
O povo armado desce dos morros

E a pergunta ressoa inadiável
Posso, com palavras, rebelar-me?

Uma mulher esquerda
Uma mulher indócil
Uma mulher imunda e vermelha
Não anda
Dança
No centro da matilha




terça-feira, 27 de agosto de 2019

Herança

Santa Maria é mais que uma foto
esquecida talvez 
nas paredes da memória
A pequena Maria
mora neste instante

Quando um dia supus não retornar
Ainda não vibravam-me os ossos
Com a ternura que precisamos ter 
pelo lugar onde procuramos 
o fim das raízes

É difícil estancar um rio que corre dentro da gente.

Casa é tranquilidade.
Este chão em que piso
é mais que uma simples recordação.

sexta-feira, 31 de maio de 2019

Procuro num poço bem fundo,
nas músicas que achei que diziam tudo,
na palavra doce dos imortais.
Procuro nos cadernos velhos,
cavo a terra, reviro livros, raízes,
subo nas copas mais altas,
não encontro a forma mais precisa de descrever o amor de uma criança.

Problema de gênero

Há tantos homens quebrados
Partindo ossos de mulheres inquebráveis


terça-feira, 16 de abril de 2019

Joana dark

Joana foi quem primeiro me ensinou
que o canto dos pássaros nem sempre quer dizer alguma coisa
Olhava e nada entendia
mas era tudo lindo de morrer
Ela sentenciou-me poeta

Joana tinha mania de cerrar os dentes
E conversar com pombas que não eram Deus
Como pode um cérebro
ser tão cheio de luzes?
Ela tinha seu jeito malévolo
que só é assim descrito
porque gostamos de proparoxítonas

Joana amava-me
Tenho ainda vivas as marcas no coração
Quando ela aqui recostou-se

Um dia, passou-lhe um cavalo de fogo à rua
Perdi-a para a noite
Minha amiga alcoólica

Seu cavalo pisou-me os óculos
Nada pude saber
Pedi perdão para o vento
Parva e desmiolada
Afinal, foram mesmo minhas mãos
que deixaram meus olhos na estrada.

Vai, Joana
Célere, impávida, máxima
Talvez nunca mais retorne.


Adeus, Juju

quarta-feira, 6 de março de 2019

Desde que senti
Pela primeira vez
Uma semente pulsante
Aqui dentro
Comecei a pedir perdão
À minha mãe
Bem baixinho
(me desculpa, me desculpa)
Meu egoísmo de ser pessoa
Nunca soube que ela foi meu primeiro universo

domingo, 10 de fevereiro de 2019

Para entender o puerpério

Vá a uma fazenda
em que o gado se cria solto no pasto
Abeire-se do cercado
Aviste a vaca recém-parida
Ela mira tua cara de muito longe
Levante o arame farpado até seu justo limite
Passe por debaixo
Atenção com prováveis cortes
Aproxime-se de peito largo
Nenhuma humildade
Aproxime-se sem escusas e
Eleve sua mão na direção do filhote
Não ligue para a vaca
Eleve sua mão agigantada e tente tocá-lo.

sexta-feira, 4 de janeiro de 2019

Escrevo poemas.
Isto não é um anúncio
É, sobretudo, uma crença
Preciso retornar a ela
A cada vinte e duas respirações
Acariciar-me a calma
Para dizer
que eu sempre terei para onde retornar