domingo, 20 de novembro de 2011

Ellen. Cap. VII, v. 4 - 35

Estava Deus a passear à beira do lago leste do firmamento, altivo e curioso, perdido nas profusas vias da meditação. O pousar os olhos no lago, de tão diáfano, fez suscitar nos pensamentos divinos vontades de criar o ser mais belo entre os belos. Pediu então auxílio às arcanjas, que apanharam um bocado da nuvem mais rosada e Deus modelou o corpo de mulher mais lindo do céu e da terra. Deu-lhe franjas muito lisas e pôs perfume em todas as dobraduras, entre as coxas fez brotar uma flor de açúcar e pingou duas gotas e meia de mel em cada olho.
Por fim, orgulhoso de sua criatura, disse-lhe: "mulher, quis experimentar meus melhores dons em ti, não desperdice-os. Reconheça-se sempre agraciada da maior beleza e faça dela teu baluarte. Não te precisas demorar nas faculdades pensantes. És perfeita. Serás chamada Jacira". A mulher fez cair suas duas primeiras lágrimas de emoção e encarnou a 3 de maio de 1784 no Rio de Janeiro.
Deus orgulhou-se ainda mais porque esta safra de belíssimas mulheres deu lastro à escola literária romântica no Brasil. Mais tarde, lamentou vagamente a culminação do movimento num exagerado ideal de beleza feminina, ideal inspirado sem dúvida em sua própria criatura. (conta-se que um destes doidos do século XIX, ao passar pela Rua do Ouvidor, avistou Jacira descabelada a abanar-se com as saias e de seu alumbramento nasceu um romance prestigiadíssimo sobre uma mulher de atributos sobrenaturais.) Sabe-se, porém, que este era verdadeiramente apenas um ideal, tendo em vista o assassinato de Jacira em 1820, único ser arquitetado inteiramente nos céus.
Deus ainda hoje conta, entre risos, que desde Cleópatra inventa-se todo tipo de artifício para forjar uma beleza celestial no rosto das mulheres, é sabido em todo o firmamento que isto é impossível. Deus, por certo, muito preocupa-se com este empenho da humanidade em obter encantos superiores, empenho que Ele considera aterrador, uma vez que o gênio é cada vez mais esmagado em prol da riqueza do corpo. "Os seres humanos estão a engabelar-se, minhas filhas. Enchem-se de inutilidades, morrem de maneira frívola por acreditarem na imortalidade do belo."
Uma das arcanjas, que está a ouvir as divagações de Deus, chega a questionar-Lhe, ali prostrado naquele mesmo lago azul, quanto às suas ordens dadas a Jacira antes da encarnação. Deus para, um pouco consternado, coça a longa cabeleira branca e responde: "Aqueles parvos conselhos me são o arrependimento mais amargo da vida. Pudera Eu apagar aquelas tolices e talvez não se tivesse feito este estrago inconsolável. De onde tirei Eu a ideia de beleza como baluarte não lhe posso dizer. A criação de Jacira, além de causar-Me terríveis dores de cabeça, serviu apenas para alastrar injustiças pela Terra - salva-se somente aquele romance, cujo nome não Me recordo. Mas tu bem sabes que Eu também sou criatura do tempo, não posso movê-lo."
Como que adivinhando o pensamento de Deus, as arcanjas suspiraram em conjunto: "Pobre Jacira!"