segunda-feira, 29 de dezembro de 2014

Os olhos dos cães

Todo cão
tem aquele olhar acalmado
de princesa Daiana

Olhos de cão são para dizer

Poucos ouvidos cabem suas palavras
Senão os deles mesmos

Isso é uma pena

Muita alma passará para quem puder entendê-los

Qualquer pessoa respira mais serenidade

Penso que seja muito certo
que deus tenha posto
nos olhos dos animais
algum segredo do mundo.

quarta-feira, 8 de outubro de 2014

Há um rasgo difícil de estancar na alma,
difícil como um quase impossível.
Essa ferida que dói em todo espaço,
tão dolorosa que, parece, não existe.

A alma vai sangrando tudo que antes havia.
Difícil estancar este rasgo, difícil alcançar e medir.
O espírito vai a triturar-se.
Um silêncio pesado guia a multidão
e suas flores brancas.
As pessoas hoje são tácitas.
A ausência tem palavras impossíveis de proferir.

Uma bala atravessou o coração de uma criança
(naquele segundo, o coração mais vivo em todo o universo)
Diga-me o que é preciso fazer!
É preciso correr à rua!
É preciso gritar! (A alma não é estanque)
É preciso implorar a deus!

Mas toda vez que a morte arranca uma flor de seus jardins,
deus tapa seus próprios ouvidos santos
a fim de que não enlouqueça.

Um anjo puro dorme nos céus
Perdoem-me, perdoem-me!
Não havia palavra que bastasse,
Não houvera nada a ser feito,
Não existe sequer um gesto.
Há apenas morte em toda e qualquer existência.

quarta-feira, 6 de agosto de 2014

Um dos sentimentos menores
talvez seja este turbilhão
que não se deixa escrever.
Alguns dias de algumas semanas
Lembro-me de meu duro exercício
A existência.

A palavra assume a forma do abismo.

Dentro das profundas águas escuras
daquela caverna
posto os meus olhos sem brilho.
O anzol circunscreve
o único movimento
quase sem distância.
Muito de vez em quando
vem à superfície
um corpo luzidio.
Sinto o coração tremular.
Um peixe me olha
com seu secular desprezo,
desenha um arco de prata
e retorna ao nada.
Sinto-me ainda mais só
na escuridão de repente mais escura.

Passo a recolher vagarosa
o anzol mais leve
que a leve pluma rosada.
Demoro muito a recolher,
parecia alcançar
o caminho para o outro lado do mundo.

Procurarei outra caverna?

Por trás do pretume de suas paredes
Há uma certeza de diamantes.

Mas quem me contou
eu nunca saberei.

sexta-feira, 20 de junho de 2014

Cinquenta anos

Quedo-me agora a me imaginar
aos cinquenta anos de idade,
Uns cabelos mais ralos,
Os olhos infantis
cobertos de pálpebras antigas.
Uma escrita talvez madura,
Talvez o prelúdio de um livro:
Um filho novo
de poemas muito velhos.
Penso primeiro em meu rosto.
Porque?

Tenho então dois lírios brancos nas mãos, dois lírios não terríveis.
Uma casa que é minha e um amor
que são praticamente a mesma coisa.
Ele prepara o jantar
Eu preparo o jantar, pois temos uma horta
E dormimos abraçados.
A memória deste futuro mostra-me também um arquejo
A vida é um eterno cansar-se e descansar-se
E vai o peso dos anos fazendo o descanso mais breve.
Tenho cinquenta anos e estou a olhar as pombas na beira de um lago
como quem olha o filho dormir.

domingo, 18 de maio de 2014

Érica dos anjos

Um dia me disseram
que temos o mesmo olhar fugidio
A mesma matéria transpassa
Este teu termo suave

Abandonaste, amiga,
os barcos flutuando na praia?
A madeira úmida desfazendo-se
entre as bordas dos cais

Sofro saudades.
Quem sabe a mesma que habita
o silêncio preso nas tuas palavras.

És tão divina
e ainda teus cabelos de anjo
para encerrar esta dádiva.

Se um dia eu puder tocar uma graça que seja
Direi:
Deixa eu ser um pouco
a cabeça de nuvens de Érica dos Anjos.

domingo, 11 de maio de 2014

Das palavras que são simples

Acostumei-me a palavras simples
pois parecem encerrar tudo que
esconde-se entre a cabeça e a boca.
Se digo, por exemplo,
- já que exemplo é a palavra que
mostra antes de explicar -
Os irlandeses são tristes
qualquer um que pensa
entenderá compadecido
que não há sol em Dublin.
Se por acaso dissesse
Os portugueses são tristes
Todo mundo poderia sentir
que eles têm muita razão
Eles têm fado
e chorariam também.

Embora triste nos dois casos
não pretenda querer,
em absoluto,
dizer a mesmíssima coisa,
Fica-se satisfeito
Porque é sabido
que temos janelas na língua
Onde todos querem se sentar.

Ora, dizer triste é melhor
que dizer sorumbático
Então paramos de pedir
dicionário no jantar
e isto consiste uma paz.

quarta-feira, 19 de fevereiro de 2014

Do inapreensível

Preciso que a cor rosa
Fosse feita apenas para o céu
Mas já puseram-na às roupas
Revolto-me

O ser humano não havia nunca
De alcançar as cores que só na natureza.
Então num milagre olharíamos
O céu roxeado amarelo
E iríamos todos chorar
As boas aventuranças

Intento que há o fúcsia carmim colorado
que ninguém jamais tocará
está no útero de uma concha profundíssima
Dentro do navio
Do mais antigo naufrágio

Amanhã
Um velho pescador terá de volta na rede enroscadas conchas
Para abri-las com muito cuidado
Embora
Perceba que mais uma vez
Não pescara o segredo
A cor daquilo que não tem nome.

terça-feira, 4 de fevereiro de 2014

Nunca mais produzi depois que se me deu
esta coisa chamada trabalho
Nunca mais uma estrela
ou palavra bravia
Todas as palavras estão mansas
Eu também

Acordo e um gosto amargo na boca
Não há tempo
Tudo diluiu-se na concretude
Tudo dissipou-se e é dureza
A vida é maquinal
O tempo, este é surdo
Não cabe o teu anseio,
teu anseio é fraco e pequeno
e triste o destino das horas

A mulher cansada
O homem cansado
As pessoas cansadas voltam
e não fazem amor

Um senhor morreu esfaqueado
A tragédia alimenta as famílias do país

É preciso extrair do homem
todas as suas únicas forças
E dar-lhe sangue alheio
dar-lhe vida pela morte do outro

Os homens são infelizes
e odeiam as segundas-feiras
Nunca mais viveremos
depois deste fardo

Pisaram na flor nascida na calçada
Ninguém a notou
Como é triste morrer deste modo.