sábado, 17 de fevereiro de 2024

Religare

Não tenho Deus

Tenho duas mãos vazias

cheias de desejo de vida

Há muito deixei de repetir mecanicamente palavras que não são minhas

Passei a reler poemas, com olhos silenciosos

e a fé dos bem-aventurados 

Os poemas são minhas orações.


Não tenho Deus

Tenho deusas bem aqui na minha barriga

Sinto-me prenhe de palavras bonitas

E isso mais que me basta


De quem me condena a partir de sua torta régua

Eu sinto profunda pena

Sei bem que teu próprio deus desaprovaria

Jamais iremos mirar o mesmo ponto no horizonte.


Não tenho Deus

Tenho a mim mesma, redescoberta, viva, alegre e compassiva

Ingovernável, insubmissa

Divina


terça-feira, 2 de janeiro de 2024

Vou a uma papelaria local

Encanto-me por um caderno 

de folhas de cores sortidas

A conta ultrapassa um pouco

minhas primeiras pretensões


Em casa, entre alucinada e entretida,

escolho a caneta de rabo de sereia

e começo a transcrever poemas

Intuitivamente, todos os três são de amor.


Enquanto o bico fino de tinta azul escuro 

passeia pela página corada de amarelo,

um pensamento se forma: este meu gesto

produz uma pequena ruptura no tempo.


Estou a rasgar o grosso tecido

da inestancável corrida tecnológica

quando vou, pegada à mão da minha filha, 

a um lugar onde se vendem livros 


Um rasgo, um pequeno furo

no contemporâneo

Uma metalinguagem


Os pássaros que ainda cantam

ainda nascem das cascas dos ovos

bicando-as

Produzem, com sua recém-força,

um furo, uma rachadura

Irrompem

colocando abaixo 

toda a estrutura que antes lhes conformava.