sábado, 28 de março de 2009

Uma mulher que passa

Meu Deus, porque esta mulher que passa
De dorso frívolo e expressão vazia
Sem cor nos cabelos
Chamou-me os olhos?

Será teu semblante?
Um nada...
Tua boca pendida
E o lábio inerte?

Será Deus, minha busca?
Confundindo tais passos na relva
Com o adeus dos pássaros ocultos?

Meu Deus, porque esta mulher que passa
Não suscita-me um verso eloquente?
E insiste meu dedo em persegui-la?
-la em lugar que não merece?

Será teu andar que não diz?
Será teu braço dependurado?
Será Deus, minha busca
Pelo nada transfigurado?

Meu Deus, instigai-me pela mulher que passa!


P.s.: Aula de Criação Literária (Captura de um instante)

sexta-feira, 13 de março de 2009

Ao Pai: Açucena

E depois que todos os poemas desenham teu nome
Tu vens metrificar a brancura da luz da pérola
E contar os grãos do corpo
Esquentar os pães dormidos
Sufocar-me de novo

Não compreendes o limo que escorre de meu útero
Nem os copos de vinho entornados de manhã
Os copos descartáveis de vinho entornados de manhã
Os copos necessários de vinho entornados amanhã

A sangria de que não me quero alimentar
Que tu comes lambuzando os beiços
E a engoma das tuas golas das roupas
A engoma gritante das calças curtas
Clamando-me que lhes arranque as bordas feitas, alinhavadas...

Dize
Que não me devo abusar do mesmo sexo
Mundanas coisas, materiais apenas
Se, contudo, vede!
Já beijei a açucena
Favo quente que não amargo como sêmen
Pétala de leite
Que não trazes em corpo teu

Não trago
Como tragas o universo
Pois tudo que for inútil
Cabe arrastado nos meus (in)versos
Tudo que não te diz
Diz tudo em palavra minha
A efemeridade da flor cravada em minhas ancas
Que tu não foste capaz de colher
Não percebes as estações do ano
Não te comoves com as crias dos animais
Não te sabes o que é um horizonte
Não te existe o abstrato nas folhas do tempo
Nem ramos de amor
No teu vento

Atiras-me ao ridículo
Do teu miolo inconsistente
Afeiçoastes, sou alimento
Tragam-me gesso pra este pobre coração mole!

Teu nome desfez todos os poemas

sábado, 7 de março de 2009

Menina dos olhos


"Deviam os mortais gerar os filhos de outra maneira, e não existir o sexo feminino. E assim não haveria mal para os homens."

(fala de Jasão em "Medeia" - Eurípedes)


Quando nasci, a enfermeira loura pediu-me ao pai: "Eu cuido, doutor, não conto não, fico caladinha! Ah que graça de menina!". Sabia mal o doutor José, quando reproduzia a velha história do deslumbramento da loura, o que lho tinham feito com a pobre criança no tal hospital.
Sete e um, horário do nascimento, a loura enfermeira anotara. "Até que tá sem lua, será que chove?". O médico, indiferente ao comentário, pede-lhe o alicate. Porque sim, foi com alicate que invalidaram minhas cordas vocais, com alicate e injeções. Eu me lembro. Puxaram-me da barriga, arrancaram as entranhas e logo estava na sala do final do corredor. Cirurgia simples, pois! "Outra fêmea com voz? Jamais!"
A mãe não gritou na mesa do parto, sua mesma anestesia me deram pra enclausurar as pontas ácidas do alicate em minha garganta. Eu só chorei, mas me silenciaram. Arregacei os braços pro mundo, o mundo me deu silêncio.
Abri os olhinhos, feridos ficaram. Eu gritava porque tinha medo, quiseram abafar. Supliquei. Porque não os olhos? Eles doem, não minha voz! Mas a bocarra não se mexeu por trás do pano. Meus olhos dariam-me duzentos pares de lágrimas naquela noite. E dois mil pares pra diluírem as palavras pelo resto da vida. "Acordo lógico", pensou, "tiro-lhe a fala, mas não vês que tens um lindo par de citrinos?" Vai-se voz, ficam-se lágrimas. As meninas dos meus olhos...

Não te podes falar, mantenhas-te calada. Mal grado a teu dono se te serves primeiro, se te pores à mesa um passo antes que todos. certas coisas se separam por natureza. Veio Eva para servir, viera Adão para ordenar. Pois tu, diabo em forma de mulher, tens reprimido o falo que te nascerias, tens repartido o vértice das pernas para jorrar sangue impuro e luxúria. És toda um adorno de sedução para que caiam em desgraça todos os homens d'ouro. Por isso, nada mais justo. Cortem-lhe pois, ao nascer, os dois músculos responsavéis pelo diálogo, porque mulheres são dadas como cães, quem de natureza submissa não precisa articular palavra alguma. Sem murmúrios enfeitiçados, dormiremos nós em paz. Se, contudo, as fêmeas se puserem a gesticular por demasiados minutos, agarrem-nas pelos cabelos e as façam calar o teu silêncio. Quando teimosas, raro rebeladas, soquem-lhes as pálpebras, sendo de preferência pelos machos de sua estirpe, de maneira que imobilizem-nas por completo, pois toda cadela comporta-se quando da ausência de linguagem oral.

Encapuzaram-me com vários panos perfumados. Só os citrinos cintilavam arregalados. Primeiro pedaço de rua: a saída do hospital. Primeira aparição ao sol: meu único sorriso. Depois um carro muito branco e um talho de uma casa estranha. Chegaram-me. Uma babá novinha aparou-me nos braços finos. "Oi, princesa!" Não respondi. Muitas cores, vários colos, alguns dias.
Mamãe não sabe do meu padecimento? - O médico roubou meu choro! - Foi o que disse, mas ela sorria. Porque? Então gritei com o olhar, nenhum sinal. A babá desconfiou, nunca havia ouvido um ruído, mas ela tinha cuidados maiores que os meus. "Dona Bia que é Dona Bia nunca reclamou."
Os pais nunca ouviram meus soluços, mas também não perguntaram porque.

P.s.: Homenagem ao dia da mulher