sábado, 5 de dezembro de 2015

2+2= cinco

Já não há mais
paciência, falta, sentimento,
coisa alguma
Andamos os amigos apartados,
cansados de ver, tocar, unir,
através dos destroços de corpos pretos
e rios de sangue grossos mas invisíveis.
O meu irmão que foi embora e nunca mais retornará...
Não sinto medo, nem raiva,
a revolta partiu-se em quatrocentos pedaços de alma
Não sinto nada.
Quero fazer um poema escuro como a ausência
para não ver as crianças dependuradas,
os camburões que passam apinhados,
o percurso de cento e onze balas
estilhaçarem uma carne barata
O pensamento tomba como duas mil correntes
sobre o corpo que já não pode aquietar-se
Cada grito descomedido que ecoa
na padaria, no táxi, na fila, nas redes, nas casas
produz um reduto fascista.
Num mundo fascista, as coisas desacontecem.
Tiram-nos a morte das mãos
A morte e a violência não são assuntos para a nossa civilidade
São ditames para o poder, são armas exclusivas para o estado.
A quem, por injúria ou desatino, anda de olhos escancarados
não resta sequer a dormência, a inércia, a pausa.



sexta-feira, 4 de setembro de 2015

Há uma criança na beira da praia
que não me deixa dormir
tem os olhinhos embotados de areia,
o pulmão cheio de água e esperanças devassadas
tem a boca pequena desbotada
e carrega um horror
feito de muitos horrores
ainda assombrados

Viro de um lado a outro
e lá está seu corpinho inerte
engolindo a espuma dos meus lençóis
Fecho os olhos com força
e ela está sem esforço
presa ao lado de dentro das pálpebras
Olho o teto vazio
ele está cheio de crianças afogadas
Busco a janela para a rua
em cada poça há um Aylan
de ombrinhos curvados na superfície

Há uma criança prostrada no meio do nosso sono
revestida de sal, vergonha e culpa
Vejo-a erguer os bracinhos miúdos
pedindo abrigo
Mal entendo seu dizer
e nem quero entendê-lo
Calma, anjinho, já volto
Viro-me para sequer um adeus
Mas as minhas pernas tornaram-se areia
Deixo a criança morrer na praia

Acordo
Mas o desejo é de dormir para sempre.

terça-feira, 25 de agosto de 2015

Pego o coração com a mão

Há dias em que
pego o coração com a mão
e ele está quase sumindo

Basta que sejam as flores pequenininhas
arrumadas muito singelas
no bolso do terno de algum velhinho
cujas rugas adornam dois cristais ainda ingênuos

Basta que seja a vontade
de uma moça fotógrafa
de olhar novamente para um animal
no caminho do sacrifício
e afagá-lo pela última vez

Basta que seja uma noiva recém abandonada
posta no meio da praça
a catar pedrinhas sem nenhuma importância
e um suspiro de alívio nos lábios

Basta que seja uma canção
que dizemos divina
por faltar palavras bastantes
ecoar de um lugar tão distante
como a própria imaginação

Ou mesmo a luta entre um peixe e um homem
que tem todos os dedos cortados de anzol
e fome

Basta ainda que seja uma criança nascendo
por entre espumas e pétalas de rosas
a olhar, através da água,
o mundo pela primeira vez

Ou - muito menos -
a chuva brilhando um arco-íris
através da luz do dia

Examino com delicadeza
um coração cansado de comover-se
lavo-lhe as mágoas
no rio que corre em nossa casa
Amanhã, outra fibra irá se despetalar

sábado, 22 de agosto de 2015

Agosto de deus

Todo dia
e não se vê
morre um poema dentro da gente
Cai uma gota para
o pôr-do-sol
É cedo para a morte
porém.

Todo dia
e não se vê
Morre o poema como o sol fenece
Coisa mais besta e triste
é andar por aí cheio de ternura
e quando no papel
vai algo como a chuva e
se sabe,
papel não se pode com água.

Poema, eu te desisto.
E então ele dexiste
Fim

segunda-feira, 1 de junho de 2015

Elogio da tristeza

"Ajusto-me a mim, não ao mundo."
Anaïs Nin


Quero chorar
Exijo o direito de chorar incessantemente
Como quem percebe estar para sempre desalinhado
Chorar até que sulcos profundos
marquem a pele de meu rosto
Que eu possa exibir orgulhosa
os estigmas de quem
não desistiu de ser triste

Quero chorar com os olhos sangrados
porque o mundo é um desgraçado
e eu também
Exijo o direito de ser irrecuperável
Posso encher a casa de espelhos
A melancolia receberá sua devida contemplação
Posso quebrar todos os relógios
para suspirar fora dos minutos

A tua razão é falsa
e cheia de egoísmo
Não tentes interromper a valsa
que teus ouvidos não alcançam
A minha dor tem a exuberância
da luz sombria que se desprende do luar
A minha dor dá-me poemas poderosos
A minha dor humilha a tua alegria

Deixa-me só
nos cantos da casa
A minha dor me basta
Quero chorar o insuportável
Deixa-me

sexta-feira, 1 de maio de 2015

Pouso meus olhos doentes no mundo
(o mundo hoje é muito depois das mariposas)
e parece-me que as graças estão todas convalescentes.
Meu pai acha meu olhar com loucuras
de quem mal adentrou uma vida de verdade
Contudo, o imprescindível é não estar ajustado.

Pouso meus olhos fatigados de notícias que não o são
na imensa devastação que já se fez,
sinto nojo de caminhar entre homens
a perceber que são carne de minha carne.
Havia um deus delirioso que se deixou emprenhar
e assim viemos.

Dai aos trabalhadores os louros
por desperdiçar suas vidas
como escravos assalariados
(Uma bota pressiona vossos pescoços para sempre contra um muro, é visto!).

Aninhai as crianças famintas
que neste momento sonham
com bonecas de pão de mel.

Mas!
Parai agora tudo que esteja acontecendo.
Há um caso a mais para se destacar.

Num espetáculo de bombas de gás lacrimogêneo,
vosso frágil sonho sangra deitado no asfalto,
Uns senhores de muito poder
(tanto que não é-lhes possível enxergar as próprias mãos)
falam coisas estapafúrdias na tv,
à noite riem, de dentes escancarados,
afundando, em seguida, suas enormes cabeças
em travesseiros macios.

Volto meus olhos sem procedentes de cura
para um mundo ainda mais difícil.
Basta-me muito pouco para pensar
que, em breve, seremos apenas
um ferimento bastante suave
no dorso maculado do universo.

quinta-feira, 5 de março de 2015

Acabo de atentar contra uma de suas criaturas e espero que possas me desculpar.
(Também sequer acredito vigorosamente no sentido disto que acabo de dizer, mas nunca me foi apresentada outra forma de expressão, o que farei com minha dubiedade?)
Precisei trocar a água dos cães e derramei-a então pelo tanque sem perceber: um brilho rodopiou no ralo e pensei se tratar de um pedaço de laminado qualquer. Qual foi meu espanto quando, ao entornar mais uma vez, a luz acendeu novamente e caiu para sempre na infinita sabedoria de ninguém mais, desceu por aquele abismo afogando-se um vaga-lume. Como se aquela luzinha suspirasse pela última vez antes da morte, soltou tamanha fosforescência para que meus olhos míopes descobrissem, de súbito, o crime. Não pôde saber de nada aquele simples e milagroso organismo.
Sou uma pessoa torpe como qualquer outra pessoa torpe. Sei, com a certeza contundente e irrefutável, que eu não voltaria meu olhos se tivera sido uma mosca comum. É cruel aprendermos a amar apenas as coisas que brilham. É cruel que eu me permita aprender este modo. A morte das moscas negras não comove a ninguém. Apenas os animais que irão desaparecer comovem, pois não podemos suportar a ideia de um mundo menos vasto. Um hibisco vive por apenas vinte e quatro horas. Não posso ter a arrogância de arrancá-lo para decidir, eu mesma, quantas horas a menos a flor será bela. Todos estes ornamentos são fúteis.
Que eu tenha destreza, que seja sobretudo amável, para com todas as criaturas doces e gentis e todas as criaturas não doces e não gentis. Que a iniquidade deles não encontre termo sobre aquelas que deixaram de ser bravias. Toda a prova de bondade humana pode reduzir-se a isso. Pensei quase resignada e fui deitar a repetir para sempre: animais não são coisas, animais não são coisas. Aprenda a não amar as coisas e estenda seu amor por toda a miraculosidade do universo.

sexta-feira, 23 de janeiro de 2015

O que assusta ou entristece

Um mundo prolixo para dizer bobagens.
Ou muito breve para o que é profundo.


O mundo é dos inúteis.

quarta-feira, 21 de janeiro de 2015

Temo dizer coisas intangíveis, coisas que são muito além de seu simples entendimento. Toda palavra será um calo. A liberdade tem muitas distâncias quando se está quase só. Temo ferir a infância dum casulo com minhas desproporções. Se nada puder regenerar, o tempo ainda cuida. Se acaso a milionésima vez for de novo apenas um vazio, lembra que o amor é também improferível. Se eu não puder amar por palavras, não blasfeme, por isso, meu silêncio.
Eu irei porque já não encontro a minha casa. Vou para longe porque há muito tempo não pertenço mais. Espero que você tenha sentido essa mesma certeza terna quando seu corpo tornou-se sua vontade. Espere. Ele se tornou?
Terei agora um corpo inteiramente meu (como poderei explicar o infinito significado deste minuto?). É tudo que mais importa agora: o meu encontro comigo. Meu corpo não se vergará ao peso das obrigações. Que o seu deus se apiede para fazê-la entender. Se meu corpo não verga, não é egoísmo, sou mulher que corre com os lobos, apenas.
O anjo da casa está morto. Na verdade, isso é tão necessário quanto feliz, embora ele tenha agonizado algumas horas. Também não pedi para acender uma vela. Não é preciso. Existe a luz das nossas lágrimas. Perdoa eu não poder explicar todas as minhas ideias atravessadas. No escuro somos todos cegos. Na luz extrema também.