quinta-feira, 5 de março de 2015

Acabo de atentar contra uma de suas criaturas e espero que possas me desculpar.
(Também sequer acredito vigorosamente no sentido disto que acabo de dizer, mas nunca me foi apresentada outra forma de expressão, o que farei com minha dubiedade?)
Precisei trocar a água dos cães e derramei-a então pelo tanque sem perceber: um brilho rodopiou no ralo e pensei se tratar de um pedaço de laminado qualquer. Qual foi meu espanto quando, ao entornar mais uma vez, a luz acendeu novamente e caiu para sempre na infinita sabedoria de ninguém mais, desceu por aquele abismo afogando-se um vaga-lume. Como se aquela luzinha suspirasse pela última vez antes da morte, soltou tamanha fosforescência para que meus olhos míopes descobrissem, de súbito, o crime. Não pôde saber de nada aquele simples e milagroso organismo.
Sou uma pessoa torpe como qualquer outra pessoa torpe. Sei, com a certeza contundente e irrefutável, que eu não voltaria meu olhos se tivera sido uma mosca comum. É cruel aprendermos a amar apenas as coisas que brilham. É cruel que eu me permita aprender este modo. A morte das moscas negras não comove a ninguém. Apenas os animais que irão desaparecer comovem, pois não podemos suportar a ideia de um mundo menos vasto. Um hibisco vive por apenas vinte e quatro horas. Não posso ter a arrogância de arrancá-lo para decidir, eu mesma, quantas horas a menos a flor será bela. Todos estes ornamentos são fúteis.
Que eu tenha destreza, que seja sobretudo amável, para com todas as criaturas doces e gentis e todas as criaturas não doces e não gentis. Que a iniquidade deles não encontre termo sobre aquelas que deixaram de ser bravias. Toda a prova de bondade humana pode reduzir-se a isso. Pensei quase resignada e fui deitar a repetir para sempre: animais não são coisas, animais não são coisas. Aprenda a não amar as coisas e estenda seu amor por toda a miraculosidade do universo.