sábado, 17 de fevereiro de 2024

Religare

Não tenho Deus

Tenho duas mãos vazias

cheias de desejo de vida

Há muito deixei de repetir mecanicamente palavras que não são minhas

Passei a reler poemas, com olhos silenciosos

e a fé dos bem-aventurados 

Os poemas são minhas orações.


Não tenho Deus

Tenho deusas bem aqui na minha barriga

Sinto-me prenhe de palavras bonitas

E isso mais que me basta


De quem me condena a partir de sua torta régua

Eu sinto profunda pena

Sei bem que teu próprio deus desaprovaria

Jamais iremos mirar o mesmo ponto no horizonte.


Não tenho Deus

Tenho a mim mesma, redescoberta, viva, alegre e compassiva

Ingovernável, insubmissa

Divina


terça-feira, 2 de janeiro de 2024

Vou a uma papelaria local

Encanto-me por um caderno 

de folhas de cores sortidas

A conta ultrapassa um pouco

minhas primeiras pretensões


Em casa, entre alucinada e entretida,

escolho a caneta de rabo de sereia

e começo a transcrever poemas

Intuitivamente, todos os três são de amor.


Enquanto o bico fino de tinta azul escuro 

passeia pela página corada de amarelo,

um pensamento se forma: este meu gesto

produz uma pequena ruptura no tempo.


Estou a rasgar o grosso tecido

da inestancável corrida tecnológica

quando vou, pegada à mão da minha filha, 

a um lugar onde se vendem livros 


Um rasgo, um pequeno furo

no contemporâneo

Uma metalinguagem


Os pássaros que ainda cantam

ainda nascem das cascas dos ovos

bicando-as

Produzem, com sua recém-força,

um furo, uma rachadura

Irrompem

colocando abaixo 

toda a estrutura que antes lhes conformava.

sábado, 30 de dezembro de 2023

Estava agora mesmo com um García Márquez no colo, uma xícara do café mais simples das minhas mãos, e uma chuva fresca ansiada por toda a cidade salpicando-me as costas. E senti um deleite como há muito não aparecia por coisas tão fantasticamente ordinárias.

E penso, talvez tristemente, como haveria de reconhecer literatura tão bonita se antes não tivesse lido amargamente romances inferiores?

Como sentir inteiramente a presença aventurosa dessa chuva tão rara se não estivesse neste sertão cheio de sede? Como me alegraria de molhar o coração neste instante se não tivesse experimentado outrora a secura de alguns homens?

Como sentir amor pela vida sem trazer na boca o gosto da morte?

domingo, 17 de dezembro de 2023

A coisa mais triste da vida é amar o outro, mas não saber fazer o outro se sentir amado. Trazer o amor dentro de si, mas não saber comunicá-lo. Então maltrata porque aprendeu, quando criança, que as formas de estar no mundo passam somente por esse caminho. Machuca na intenção de ajudar, ofende na intenção de corrigir. É o amor transformado n'outra coisa desastrosa já muito distante do que deveria ser. Você construiu uma caixa muito muito pequena para caber seu objeto de amor, você precisou comprimi-lo, e ele, por sobrevivência, se apequenou, cortando partes de si que você não desejava. De repente, você acorda e já não reconhece mais nada. O amor adoeceu, e resultou em algo muitíssimo perigoso: o outro já não consegue mostrar quais são seus limites, o outro se apartou de sua percepção de autovalor, porque se desconectou de sua verdadeira essência. 

E tantos anos vão passando nessa maneira de se comportar, que a dinâmica se cristaliza. No entanto, em algum ponto da árvore genealógica, alguém irá, por forças maiores, mover montanhas nas costas para quebrar estes cristais.

A coisa mais triste da vida é amar o outro e não saber aceitá-lo, o que é o mesmo que um anti-amor. Porque o amor abre-nos as portas para nós mesmos, dá-nos liberdade para sermos quem somos. E é só assim que se pode descansar.

Por isso, não desperdice sua vida odiando aqueles que você mais ama, os mais próximos, tão íntimos que não lhe custa nada deixar as gentilezas de lado, como se fossem apenas cerimônias desnecessárias, tão íntimos que o grito atravessa a sala cada dia mais, até se tornar habitual. Não desperdice sua vida reclamando com o outro, exaustivamente, por ele não ser aquilo que você idealizou, por ele estar fora do seu controle. O outro não é um papel a ser exercido no seu projeto de vida feliz.

Por isso, procure honestamente depurar as tuas próprias feridas. Retire a violência das tuas ações, e faça-a repulsiva novamente. Afaste-se dela. Toque nos teus sentimentos todos com dignidade, mesmo que seja excruciante. Toda dor um dia se acaba. Cure essa forma inumana de amor ultrapassado, não permita, peço-te de mãos unidas, que essa herança terrível alcance crianças sadias. Quero que guarde essa premissa: só nos tornamos capazes de amar na medida em que amamos a nós mesmos, mas quando não temos a mais vaga ideia de quem somos, isso se  torna inapelavelmente impossível. Vamos quebrar estes ciclos nefastos. 


quinta-feira, 30 de novembro de 2023

Observo as imensas injustiças de gênero. E mordo os dentes com vontade de quebrá-los.

Um homem narcisista tem para si mil mulheres disponíveis para amá-lo e reverenciá-lo como o animal mais raro de toda uma floresta. Mulheres adormecidas anseiam pela segurança que somente um homem - acreditam - poderia proporcionar, medem o próprio valor por haverem sido escolhidas entre tantas e tantas outras. Elas não podem ainda ver.

Nós, mulheres que retornam, curando-nos da violência do pai dos nossos filhos, lambendo ainda as cicatrizes que ainda teimam em se abrir, não iremos ser amadas tão cedo. Pois o que sobrou da selva verdejante são cinzas na terra seca. Não somos difíceis, em absoluto, não somos difíceis. Temos os olhos abertos e um laço da Verdade. Apenas estamos à espera de algo raríssimo: um homem que ame uma mulher, não a vida confortável que ela pode oferecer, sendo-lhe serva.

domingo, 6 de agosto de 2023

 A raiva tem se manifestado. Vem e estilhaça tudo que (não) vê pela frente. Chega como um aviso grandioso: uma hora o corpo não aguenta o peso de tanto silenciamento. Você precisa dizer, você tem que dizer, afastar-se nem sempre funciona, nem sempre existe espaço. Como dizer? Como mover essa ferida primordial? Essa ferida instalada desde o nascimento. Você continua retirando as cascas, isso não é um tratamento. A dor não é para doer, a dor é para te fazer andar. Precisamos andar. Para onde? Para frente, dizem. Onde fica a frente de um círculo? Iremos andar. Andar para dentro. Ensimesmar-se. Para o ponto em que a raiva se forma, vamos desativá-la antes que ela quebre alguém. Antes que ela quebre você mesma.

A raiva é como a morte. Necessária. não a negue, mas não a busque, ela virá no tempo exato. Ela vem trajada com um vestido de fogo exuberante. Aprenda a apreciar, entretanto, não se aproxime.

Não se distraia. Permaneça quanto tempo for preciso dentro de si mesma, observe. Respire e observe. O silêncio também é violento. É uma recusa, é um tipo de desprezo. Eu sei o quanto custa não desprezar a ignorância. Mas o silêncio não pode ser a única arma. Arma? Há quanto tempo você tem oferecido apenas o silêncio para a violência do outro? Um silêncio raivoso te adoece aos poucos, um silêncio raivoso não constrói pontes. O que constrói pontes? Não sei. Sei que é preciso atravessá-las.


domingo, 9 de julho de 2023

 Não é que eu possa viver sozinha, isso já foi exaustivamente repetido, esse discurso já deveria estar superado, somos sozinhas, precisamos aprender a nos bastar, precisamos ler Complexo de Cinderela e entender que não existe salvação de príncipe nenhum, somos odiadas, precisamos do afastamento que regenere nosso cérebro adoecido, precisamos construir novas pontes, novas conexões que progressivamente irão nos erguer de toda a lama. Precisamos aprender a pronunciar a palavra abuso e apontá-lo, mesmo que a violência aumente, e certamente ela irá. Precisamos aprender o que é amor bonito, amor saudável, amor que floresce. Por isso nos cercamos de mulheres que abraçam as nossas dores mais feias. Elas não desistem, não nos julgam, elas são nossos pilares fundamentais, elas nos ajudam a voltar pra nós mesmas. Já sabemos que podemos viver a solidão, porque na verdade estamos juntas no lado de cá do abismo. Não é que eu possa, isso já está mais que provado. É que eu quero. Eu quero viver sozinha. E o querer de uma mulher finalmente livre tem muita força. O querer definitivo de uma mulher arrancando o véu que encobre a realidade assusta. Eu quero viver, não ter medo. Eu quero me curar e esse é o remédio. 

Eu sou imensa. Homem nenhum me apequena. Eu sou floresta. Homem nenhum me habita ou devasta. Homem nenhum me tira o brilho, eu sou estrela alta. 

Onde não cabemos, não forçamos nenhum encaixe, não mais. Eu não sei apenas aquilo que não quero, porque agora eu sei quem eu sou.

quarta-feira, 12 de abril de 2023

Poemas para me salvar de mim

Escute!

Não volte para um homem que não sabe te ouvir,

Não volte para um homem que solta arpões pela boca, 

Não volte para um homem que pisa onde sabe que dói 

Não volte para um homem para quem não se pode ser vulnerável

Guarde seu corpo majestoso e sagrado n'algum jardim que ainda vamos descobrir 

Só você pode arrancar os arpões, só você pode se curar, só você pode escolher a quem dizer, só você pode deixar entrar.

Afaste o sal da ferida, deixe a água correr

Sente-se lentamente na sala escura do seu pensamento e comece a traçar um novo caminho

Apenas comece 

E não volte atrás 

domingo, 9 de abril de 2023

Maternidade

Vivo esquecendo das coisas que minha filha fazia

A única de que não posso me esquecer é de mim.

terça-feira, 4 de abril de 2023

 A luz entrando agora pela janela do ônibus às cinco da tarde de um fevereiro em brasa, queria poder fotografar. O mato da estrada é de um verde iluminado. Pequenas lagoas e poças douradas aparecem de vez em quando. As árvores de copas redondas, o céu morrendo claro e escuro, deslumbrante, parece um desenho. O sol se escondeu numa nuvem que ficou com a borda toda brilhosa.

Eu não posso ler por que meu pensamento fica desorganizado, por que estou embevecida pelas cores da paisagem e excitada demais para me concentrar. Você entra no meio das frases, minha cabeça insiste um pouco, mas acabei deixando o livro de lado. Reencontrei bem devagar cada memória do que fizemos. Ocorreu-me que preciso voltar a ser como criança para que meu coração se deite naquele momento, sem pressa, sem saltar para o futuro, que sequer existe. Quero no seu corpo fazer uma festa, sem metáforas, compartilhar tantas outras paisagens, acordar, cozinhar e dançar e beijar e foder e voltar a cozinhar. 

Quero ouvir você me contar sua história, tudo, desde o começo, como se fosse possível, desde o primeiro território que você habitou quando chegou ao mundo. Quero saber como a arte te transforma. Qual foi a última vez que você chorou? Você ergue as mãos ao rosto para aparar as próprias lágrimas? O que somos nós dois? O que você sente quando pinta? Pinta aqui meu corpo! Eu gosto do seu nome na minha boca. Eu posso me mostrar pra você? Eu posso? Você vai tratar com a delicadeza que você parece ter?

Não sei, não sei, não sei. Mas ainda um dia todas essas perguntas feitas de ar... 

Agora preciso dormir.