sábado, 30 de dezembro de 2023

Estava agora mesmo com um García Márquez no colo, uma xícara do café mais simples das minhas mãos, e uma chuva fresca ansiada por toda a cidade salpicando-me as costas. E senti um deleite como há muito não aparecia por coisas tão fantasticamente ordinárias.

E penso, talvez tristemente, como haveria de reconhecer literatura tão bonita se antes não tivesse lido amargamente romances inferiores?

Como sentir inteiramente a presença aventurosa dessa chuva tão rara se não estivesse neste sertão cheio de sede? Como me alegraria de molhar o coração neste instante se não tivesse experimentado outrora a secura de alguns homens?

Como sentir amor pela vida sem trazer na boca o gosto da morte?

domingo, 17 de dezembro de 2023

A coisa mais triste da vida é amar o outro, mas não saber fazer o outro se sentir amado. Trazer o amor dentro de si, mas não saber comunicá-lo. Então maltrata porque aprendeu, quando criança, que as formas de estar no mundo passam somente por esse caminho. Machuca na intenção de ajudar, ofende na intenção de corrigir. É o amor transformado n'outra coisa desastrosa já muito distante do que deveria ser. Você construiu uma caixa muito muito pequena para caber seu objeto de amor, você precisou comprimi-lo, e ele, por sobrevivência, se apequenou, cortando partes de si que você não desejava. De repente, você acorda e já não reconhece mais nada. O amor adoeceu, e resultou em algo muitíssimo perigoso: o outro já não consegue mostrar quais são seus limites, o outro se apartou de sua percepção de autovalor, porque se desconectou de sua verdadeira essência. 

E tantos anos vão passando nessa maneira de se comportar, que a dinâmica se cristaliza. No entanto, em algum ponto da árvore genealógica, alguém irá, por forças maiores, mover montanhas nas costas para quebrar estes cristais.

A coisa mais triste da vida é amar o outro e não saber aceitá-lo, o que é o mesmo que um anti-amor. Porque o amor abre-nos as portas para nós mesmos, dá-nos liberdade para sermos quem somos. E é só assim que se pode descansar.

Por isso, não desperdice sua vida odiando aqueles que você mais ama, os mais próximos, tão íntimos que não lhe custa nada deixar as gentilezas de lado, como se fossem apenas cerimônias desnecessárias, tão íntimos que o grito atravessa a sala cada dia mais, até se tornar habitual. Não desperdice sua vida reclamando com o outro, exaustivamente, por ele não ser aquilo que você idealizou, por ele estar fora do seu controle. O outro não é um papel a ser exercido no seu projeto de vida feliz.

Por isso, procure honestamente depurar as tuas próprias feridas. Retire a violência das tuas ações, e faça-a repulsiva novamente. Afaste-se dela. Toque nos teus sentimentos todos com dignidade, mesmo que seja excruciante. Toda dor um dia se acaba. Cure essa forma inumana de amor ultrapassado, não permita, peço-te de mãos unidas, que essa herança terrível alcance crianças sadias. Quero que guarde essa premissa: só nos tornamos capazes de amar na medida em que amamos a nós mesmos, mas quando não temos a mais vaga ideia de quem somos, isso se  torna inapelavelmente impossível. Vamos quebrar estes ciclos nefastos. 


quinta-feira, 30 de novembro de 2023

Observo as imensas injustiças de gênero. E mordo os dentes com vontade de quebrá-los.

Um homem narcisista tem para si mil mulheres disponíveis para amá-lo e reverenciá-lo como o animal mais raro de toda uma floresta. Mulheres adormecidas anseiam pela segurança que somente um homem - acreditam - poderia proporcionar, medem o próprio valor por haverem sido escolhidas entre tantas e tantas outras. Elas não podem ainda ver.

Nós, mulheres que retornam, curando-nos da violência do pai dos nossos filhos, lambendo ainda as cicatrizes que teimam em se abrir, não iremos ser amadas tão cedo. Pois o que sobrou da selva verdejante são cinzas na terra seca. Não somos difíceis, em absoluto, não somos difíceis. Temos os olhos abertos e um laço da Verdade. Apenas estamos à espera de algo raríssimo: um homem que ame uma mulher, não a vida confortável que ela pode oferecer, sendo-lhe serva.

domingo, 6 de agosto de 2023

 A raiva tem se manifestado. Vem e estilhaça tudo que (não) vê pela frente. Chega como um aviso grandioso: uma hora o corpo não aguenta o peso de tanto silenciamento. Você precisa dizer, você tem que dizer, afastar-se nem sempre funciona, nem sempre existe espaço. Como dizer? Como mover essa ferida primordial? Essa ferida instalada desde o nascimento. Você continua retirando as cascas, isso não é um tratamento. A dor não é para doer, a dor é para te fazer andar. Precisamos andar. Para onde? Para frente, dizem. Onde fica a frente de um círculo? Iremos andar. Andar para dentro. Ensimesmar-se. Para o ponto em que a raiva se forma, vamos desativá-la antes que ela quebre alguém. Antes que ela quebre você mesma.

A raiva é como a morte. Necessária. não a negue, mas não a busque, ela virá no tempo exato. Ela vem trajada com um vestido de fogo exuberante. Aprenda a apreciar, entretanto, não se aproxime.

Não se distraia. Permaneça quanto tempo for preciso dentro de si mesma, observe. Respire e observe. O silêncio também é violento. É uma recusa, é um tipo de desprezo. Eu sei o quanto custa não desprezar a ignorância. Mas o silêncio não pode ser a única arma. Arma? Há quanto tempo você tem oferecido apenas o silêncio para a violência do outro? Um silêncio raivoso te adoece aos poucos, um silêncio raivoso não constrói pontes. O que constrói pontes? Não sei. Sei que é preciso atravessá-las.


domingo, 9 de julho de 2023

 Não é que eu possa viver sozinha, isso já foi exaustivamente repetido, esse discurso já deveria estar superado, somos sozinhas, precisamos aprender a nos bastar, precisamos ler Complexo de Cinderela e entender que não existe salvação de príncipe nenhum, somos odiadas, precisamos do afastamento que regenere nosso cérebro adoecido, precisamos construir novas pontes, novas conexões que progressivamente irão nos erguer de toda a lama. Precisamos aprender a pronunciar a palavra abuso e apontá-lo, mesmo que a violência aumente, e certamente ela irá. Precisamos aprender o que é amor bonito, amor saudável, amor que floresce. Por isso nos cercamos de mulheres que abraçam as nossas dores mais feias. Elas não desistem, não nos julgam, elas são nossos pilares fundamentais, elas nos ajudam a voltar pra nós mesmas. Já sabemos que podemos viver a solidão, porque na verdade estamos juntas no lado de cá do abismo. Não é que eu possa, isso já está mais que provado. É que eu quero. Eu quero viver sozinha. E o querer de uma mulher finalmente livre tem muita força. O querer definitivo de uma mulher arrancando o véu que encobre a realidade assusta. Eu quero viver, não ter medo. Eu quero me curar e esse é o remédio. 

Eu sou imensa. Homem nenhum me apequena. Eu sou floresta. Homem nenhum me habita ou devasta. Homem nenhum me tira o brilho, eu sou estrela alta. 

Onde não cabemos, não forçamos nenhum encaixe, não mais. Eu não sei apenas aquilo que não quero, porque agora eu sei quem eu sou.

quarta-feira, 12 de abril de 2023

Poemas para me salvar de mim

Escute!

Não volte para um homem que não sabe te ouvir,

Não volte para um homem que solta arpões pela boca, 

Não volte para um homem que pisa onde sabe que dói 

Não volte para um homem para quem não se pode ser vulnerável

Guarde seu corpo majestoso e sagrado n'algum jardim que ainda vamos descobrir 

Só você pode arrancar os arpões, só você pode se curar, só você pode escolher a quem dizer, só você pode deixar entrar.

Afaste o sal da ferida, deixe a água correr

Sente-se lentamente na sala escura do seu pensamento e comece a traçar um novo caminho

Apenas comece 

E não volte atrás 

domingo, 9 de abril de 2023

Maternidade

Vivo esquecendo das coisas que minha filha fazia

A única de que não posso me esquecer é de mim.

terça-feira, 4 de abril de 2023

 A luz entrando agora pela janela do ônibus às cinco da tarde de um fevereiro em brasa, queria poder fotografar. O mato da estrada é de um verde iluminado. Pequenas lagoas e poças douradas aparecem de vez em quando. As árvores de copas redondas, o céu morrendo claro e escuro, deslumbrante, parece um desenho. O sol se escondeu numa nuvem que ficou com a borda toda brilhosa.

Eu não posso ler por que meu pensamento fica desorganizado, por que estou embevecida pelas cores da paisagem e excitada demais para me concentrar. Você entra no meio das frases, minha cabeça insiste um pouco, mas acabei deixando o livro de lado. Reencontrei bem devagar cada memória do que fizemos. Ocorreu-me que preciso voltar a ser como criança para que meu coração se deite naquele momento, sem pressa, sem saltar para o futuro, que sequer existe. Quero no seu corpo fazer uma festa, sem metáforas, compartilhar tantas outras paisagens, acordar, cozinhar e dançar e beijar e foder e voltar a cozinhar. 

Quero ouvir você me contar sua história, tudo, desde o começo, como se fosse possível, desde o primeiro território que você habitou quando chegou ao mundo. Quero saber como a arte te transforma. Qual foi a última vez que você chorou? Você ergue as mãos ao rosto para aparar as próprias lágrimas? O que somos nós dois? O que você sente quando pinta? Pinta aqui meu corpo! Eu gosto do seu nome na minha boca. Eu posso me mostrar pra você? Eu posso? Você vai tratar com a delicadeza que você parece ter?

Não sei, não sei, não sei. Mas ainda um dia todas essas perguntas feitas de ar... 

Agora preciso dormir. 

 

Coisas que me atraem

 

- Olhar cheio de ternura para animais e crianças.

- Comer salada (comer bem), não ter fissura em coisas que sangram, ou seja, ser compassivo.

- Voz bonita.

- Dançar sem se importar com mais nada. Fazer um sorriso com o próprio corpo.

- Gostar de si ao invés de odiar os outros.

- Ser um homem sem medo do feminino, saber chorar, saber tocar nos sentimentos, pintar-se de qualquer cor, arrumar-se.

- Morder.

- Ser artista, ter delírios (tocar fora da corda).

- Usar verdade nas palavras.

- Colar os gestos nas coisas que diz, ou seja, manter a ação dentro dos verbos.

- Lavar os pratos quando eu cozinhar.

- Apertar os olhinhos.

- Olhar para o invisível.

- Ter um ouvido apreciador e interessado.

- Ser um pouco triste.



terça-feira, 7 de fevereiro de 2023

Quando o carnaval chegar,

(ele vem e temos tanta sede)

quando todos os corpos

Ensandecidos 

pisarem nesse chão,

e o mundo tremer,

Eu vou me pintar 

de muitas cores

que nem sei o nome

Chega arrepio

E vou te pintar também 

Tenho uma fantasia de sol

pra dançar quente 

e arder 


Depois

Você esperando no bar

Já chego

Vou sentar no seu colo

Moço, traga mais uma

Não quero copo não 

Que a cerveja eu vou beber

dentro da sua boca

Trincando 




quarta-feira, 25 de janeiro de 2023

O estado de apaixonamento é isto

Decidir agora que quero 

E procurar você em todo poema

E enfiar você em todo meu sonho

E puxar sua boca pra perto de mim


Guardar o galhinho de arruda num livro

Porque é simbólico 

Grudar você no pensamento

E sorrir

Sorrir 


Ser um monstro rosa

Dormir abraçado a minha casa

E rir de qualquer bobagem

Paixão dá cócegas 


Dizer palavras carinhosas sem medo

Por que palavras carinhosas têm um único destino:

Serem ditas

Arrumar minhas malas 

Pegar um barco de papel

e atravessar montanhas 

pra te ver


Quero te ver com os olhos das mãos 

É tão bonito isso de escolher ser apaixonada por você

quarta-feira, 11 de janeiro de 2023

Tua boca em frente a minha

Você percorre os dedos

pela face, 

pelos cantos macios dos lábios, 

pelo queixo, 

Faço que retenha a mão no pescoço

grossa mão de homem gentil

que aperta sem ferir

Envolve meu corpo por dentro

Escandalosamente profundo

Rasga-me de encontro à terra

Derramo um caldo lascivo 

Na cama, no quarto

Por sobre o piso

desabrocham um milhão de açucenas 

vivíssimas e gloriosas


domingo, 1 de janeiro de 2023

É o primeiro dia de um ano 

Parece que estamos novos como brotos de folhas verde claro

Na superfície, um brilho de areia branca

No entanto, há dores muito antigas

de ciclos que estamos tentando quebrar

Teci um manto de lágrimas 

Mas estou dançando nas pedras da praia


Estou ferida

dançando por cima das pedras limosas

Estou cansada

Mas ergo a barra de minhas saias

E minhas pernas são fortes


Escolhi não me abandonar


Posso não ver adiante

Mas sinto

que esta vida é mais verdadeira e bonita

do que entregar meu sangue a um homem

que nunca irá me alcançar

Não consigo ouvir a música

Mas sei que é preciso dançar


Posso agora ter os olhos embotados da fúria 

de ser mulher 

de ser uma mãe sozinha

Mas sei que por baixo das pedras

por baixo da água salgada

por baixo da terra

A vida está acontecendo para sempre