quarta-feira, 27 de novembro de 2013

Vinicius e eu

Mas é claro que te amo
e a vida é doce e infinda,
A morte não existe
vamos viver nas luminárias
dois pirilampos febris.
É claro que o amor é tudo
e tem cheiro de tangerina,
estamos predestinados
e a alma de Zeus
respira suave
em tudo quanto existe.
É claro que te amo
e sou tudo,
Mas acontece que eu sou feminista.

quarta-feira, 23 de outubro de 2013

Aos poetas que conheço, pois é difícil acreditar.

A poesia é o mais próximo que podemos estar de deus. Se guardamos todos os impossíveis dentro de nós, e se alcançamos o útero do mundo, ali onde as coisas estão despertas, e o movimento é reverso, e no tempo há um onde, podemos ver, logo longe, os dedos grandes de deus.

Um único fanatismo é cabível, que é o fanatismo da poesia. Não se pode ser cego de tua luz, nem desamparado por tua lacuna, se ela não há. Pode-se dormir nos silêncios do poema, descansar-se. Mas então, quando o silêncio fica prenhe, como eles disseram, a origem da vida se desprende mais uma vez da poesia. Cada célula, acordada, retoma seu fardo de produzir milagres.

Tudo é criado porque vive o poeta. Tudo que está, tudo que é além. Tudo renasce e remorre pela palavra. As palavras que correm na seiva mais remota, que estão, ainda puras, no sangue das flores. Tudo isso que permanecerá adiante da morte do último sopro de vida é a poesia. A junção dos tempos e dos mistérios, a casa dos seres arcaicos, a Fonte, o vértice. Uma criança está sendo nutrida no ventre da eternidade, chamam-na criança primordial.

Enquanto isso, num pequeno planeta perdido na maestria do espaço, um poeta chora amargamente diante de uma tela fria. Está cansado de uma vida de desistências, sua alma lhe diz que deus relegou-lhe o mais impossível dos impossíveis. Existe uma coisa chamada dinheiro que vai destruindo tudo que se ama. Seu desejo é serenidade e imensidão, no entanto, uma verdade secreta diz que há os que nascem unicamente para chorar. Pensa em cortar os pulsos e entregar-se ao mar. Como é triste perceber, meu deus. As lágrimas dos poetas dão movimento a todo o universo.

sábado, 19 de outubro de 2013

Poema - O Pagador de Promessas

Uma promessa foi feita
para a vida de um burro salvar
por um homem simples e ingênuo
com uma cruz a carregar.

Ao lado de sua esposa,
caminhou sem descansar
e ao chegarem na Igreja,
enfim, não puderam entrar.

O pobre Zé do Burro,
ao ver seu amigo quase morrer,
viu-se tomado pelo desespero
e a Iansan foi recorrer.

Assim como o Senhor Jesus
em suas costas pôs uma cruz,
Mas como poderia Zé saber
que sua promessa não seria cumprida
que sua fé seria traída
e que a sua espera
estava somente o sofrer?

Fecharam as portas do seu destino tão desejado.
Então, Zé do Burro, incompreendido e revoltado,
decidiu o pé dali não arredar
até que sua cruz estivesse no altar.

O padre, tão rígido e intolerante
acusou Zé de um pecado presunçoso:
"Como um reles viajante
ousa imitar o filho do Todo Poderoso?
Esse tal de Zé
num terreiro de candomblé
diz ter alcançado uma graça.
Ele nada mais é
do que um demônio que se disfarça!"

Surgiram curiosos e aproveitadores
alguns riram, alguns eram defensores
alguns apostavam, outros questionavam,
mas ninguém sabia o que tinham passado
os dois que ali estavam.

Tentaram convencê-lo a não ir adiante,
preocupados com um desfecho pior,
mas a fé de Zé do Burro era tão grande
que nem a esperança o deixou só.

O drama de Zé do Burro
teve rápida repercussão,
vieram jornal, polícia e autoridades.
Estava armada a confusão.

Reinventaram sua história
o acusaram sem motivo e sem perdão.
Zé já não sabia o que fazer,
tentou se defender, mas foi em vão.

Circo armado e cerco fechado
caíram sobre o coitado
ouve-se um tiro dentro da multidão
Zé do Burro tem no ventre as mãos [...]


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quinta-feira, 12 de setembro de 2013

Não preciso de ti para viver, amor

Não preciso de ti para viver, amor. Se tudo acaba, acabo eu, mas tomo meu pulso e continuo a respirar. Não te preciso, percebi hoje, como o cego permanece mesmo apagados seus dois faróis. Estive tão confusa com as recentes descobertas que quase viro louca e começo a comer lixo. (Quantas ideias desvirtuadas a humanidade nos reservou!) Mas ao fim de certas crises existe uma serenidade de caramujo.
Morrer de amor é bom num livro de Gabo ou no Hypeness. Uma poesia grandiosa é também feita de morte.
Também não era morte o que se deu no meu peito quando escolhi partir. Não essa morte cristã cheia de trevas. Nunca a morte de uma estrela, irruptiva e absoluta. Não preciso de ti assim como os gatos podem perder as patas. A incrível felicidade de saber-se inteira, de saber nenhuma precisança. É muito pouco o que verdadeiramente precisamos, e iremos descobrir.
Queimaram todas as fórmulas, no entanto, sinto um caminho muito único dentro de um bilhão de galáxias, que é esse de ser inteira com você. Estou deixando de ser líquida para abraçar as certezas. A certeza recriada. Esqueça os corpos que passaram pelo meu, corpos são poeira. É certo que somos sozinhos no universo, sozinhos de não caber uns nos outros, está aí a razão de procurar cobrir a fenda da solidão humana. O mito é a forma que tenho de suportar a vida. Pensar o nosso umbigo como um nó de separação é o que me salva.
Preciso apenas acreditar numa verdade que não esteja em ruínas. Preciso abandonar o modo maniqueísta em que me puseram. Irei transbordar do meu corpo, é fato. Há vezes em que já não sinto os pés. Minha vontade é sorrir dentro dos teus olhos ao me transformar. E sentir mil explosões que jamais serão morte crescendo irresolutas. E posso divagar sobre a palavra 'sempre' e ter uma firmeza sem par. Nunca mais me senti atordoada. Estou deixando de ser água para poder abraçar deus. A única morte possível será a morte das necessidades. 
Não preciso de ti para viver, amor. Apenas tenho a obrigação de destruir os românticos e não perdê-los. Podemos viver no meio das coisas todas recriadas. Numa fé que me redima de todo egoísmo que te fiz. O amor faz doer, mas não será dor puramente. Como íntima ordem de comando, tenho ainda aquela vontade de milagrosamente fazer uma pitanga viva dentro de mim que seja tua. Não te preciso para viver, te preciso para ser amor.

quarta-feira, 28 de agosto de 2013

Há um céu só pra você

Não estou, neste momento, comovida por algum sentimento que tenha me arrebatado das causas rotineiras. Apenas te vi pela madrugada em sonho e não pude te proteger, como sempre tencionei. Então, talvez por ter presenciado impune aquela cena, talvez pelo recolhimento forçado, e talvez ainda por aquilo que mortifica e alimenta ao mesmo tempo aqui dentro e todos os dias, eu pretendi dizer, da maneira mais mágica possível, como fui uma menina agraciada por crescer ao seu lado. Sinto que ninguém poderia me dizer todas as coisas preciosíssimas que você me mostrou com a sua peculiar linguagem, a sua linguagem que são os seus olhos, quando curiosos, quando interrogativos no jeito de voltar-se para mim, a linguagem que é seu instinto de ser inteiramente um amor ingênuo.
Eu gostaria de ser como você em tantas e tantas lições. O que é mais inquietante é imaginar que você sofre em cada partida muito mais do que eu pude e poderia. Porque eu posso contar a quantidade de tempo até meu retorno, e você pode apenas esperar. Muito pior, você acredita que eu te abandonei. E duas vezes por ano se dá esta ausência que você vê abandono. Você deixa de comer, mas ninguém percebe. Passar fome é o seu jeito de chorar. Depois de alguns meses, todos se irritam com sua festa exagerada só porque eu estou de volta. Eu entendo porque sua alegria é igual à minha.
Sei que é pedir demais que sua persistência se estenda por mais alguns anos, talvez por isso esteja escrevendo, e também tenho guardadas fotografias para te mostrar aos meus filhos.
Tudo que poderia desejar na vida de agora é conseguir amar como você tem me amado nos últimos dez anos. Preciso acreditar que há um céu só pra você.

sábado, 27 de julho de 2013

A mãe é uma casa

O tempo em que uma criança mama é um tempo de conjugar. Uma transição dolorosa, mas cheia de esplendor. Uma maneira de prolongar cordões rupturados, a forma primeira de amor e enlevo.

Minha mãe amamentou-me por quatro anos. Ela me chamava, eu fazia meu ninho, e chupava os mamilos sem leite, porque era tudo que sabia fazer. Depois eu cantava as músicas da escola - encontrei uma casinha enfeitada de cupim - ela não queria perder o que havia para além do peito. Eu era fácil de ser lida, era calma e sem grandes medos.

Mas um dia, meu pai começou a debochar aquele ritual arrastado, aquela insistência e recusa. Eu me lembro apenas de ouvir palavras meio imodestas, como 'mocinha'. E não poderei precisar se minha atitude foi irrefletida, se eco, se culpa, se tédio, se medo crescendo...
Então, numa tarde, naquele quarto, eu disse não a minha mãe, um não que fez a primeira fresta na nossa casa, a primeira rachadura, a primeira partida. E ela chorou baixinho as antigas lágrimas de mãe, e mostrou sua tristeza apenas para os seus santos rosários.

terça-feira, 23 de julho de 2013

Estrelinha pia-pia

Já tem muitos tempos que os ossos estão fraquinhos. O pulso treme, as células se morrem e nem se vê. Acabou o são cabelo na cabeça, cresceu uma penugem no rosto. Será que é pecado de Deus? Sofrimento é uma palavra vasta que eu acabei de desconhecer. Não sei mais de muita coisa, a gente desaprende muito rápido. Quantas coisas foram feitas para não ser compreendidas?
Agora que o anjo voltou pro céu (que paz mais rosada), vejo gente larga-larga no universo, tem dor, mas tem força. E eu não sei nem chorar.

(dois anos)

Eu rezei por você, nunca saberei se o suficiente, nunca disse o que quer que fosse preciso, eu nunca digo, mas sei que te amo, você está num bom lugar e não sofre mais, eu estou feliz.

É preciso matar o anjo da casa

Aos cinco anos de idade, eu era verdadeiramente um anjo na casa. As minhas asas atabalhoadas fizeram ir ao chão muitas bonecas de porcelana. Ainda não havia completado um ano e quebrei a vidraça de uma mesinha num só golpe de tornozelo, não me feri e minha mãe achou mesmo que estava feito milagre. Porque eu era um bebê bonito e vi muito rosto admirado, a minha mãe era risonha, maravilhada que logo ela tivesse parido um anjo loiro. Até quebranto tive, mas me rezaram. A enfermeira no hospital fez graça com meu pai, queria me levar. Ele disse que uma coisa tão bem feita não se dá a qualquer um assim. Aí, lá para os sete, eu já podia usar batom, ganhei um kit de aniversário e a casinha completa da Barbie. Depois enjoei daquele quarto todo rosa, a boa verdade é que nunca gostei, não tinha idade pra isso. Com uns dez, minha mãe me botou para lavar pratos, ponto de cruz eu achava coisa de velha, mas ela insistia. Então, entrou um senhor na nossa vendinha e me viu de agulha e pano de prato na mão, achou de fazer a ressalva: 'menina prendada!' Achei uma ofensa! Lembro que fechei muito a cara. E nunca mais cruzei um ponto na vida. Então foi mais ou menos por aí que fui deixando de ser o anjo na casa.


quinta-feira, 13 de junho de 2013

Mas seria muito bonito se dos ovos brotasse flor

Eu só gostaria de saber que tamanho têm as nuvens. A extensão exata das chuvas, que é-me questão de muitos quês. Como, quando criança, descobri que os ovos não cresciam das plantas, já que um dia vi cascas quase inteiras nas pontas de uma babosa. Mas seria muito bonito se dos ovos brotasse flor. 
Não quero mais ver as coisas pelo olho da ciência. Cansei-me. A ciência não me basta. A ciência pura é uma excrescência. Há sucesso em saber que os abacaxis são alcalinos? A teoria dos humores era uma verdade quase sublime, mas a loucura está soterrada. Se uma criança pede que lhe sirvam uma nuvem em lugar da sopa, deem nuvens às crianças! O maior pecado humano é não alcançar os olhos das crianças para depois dizer-lhes 'basta! Aqui não se come nuvens'. Degenerado é aquele que incompreende a sublevação dos sonhos infantis.
Gostaria de ainda ver que saem luzes cristalinas dos beijos que são beijos. Gostaria muito de ver um ovo florido, de transformar a opacidade da matéria.
Trago um deus que se regozija ao cear nuvens com as crianças, mas emudece diante de um tempo que é sólido demais.

quarta-feira, 5 de junho de 2013

Um dia desses,
desses que não estão perdidos,
Eu disse ao maior amor que tive
que sim.
Quero, enfim, alumiar o sertão,
dar minhas pérolas
e meus pulsos
Se junto d'ele eu estiver.

É a minha fome primeirinha
que nunca mais vou morrer.

Vou criar crianças
pra domadoras do mundo
vou lecionar
nas santas marias
e comer um pão feliz.

Procurei, pois, seu colo
e duas lágrimas
banhavam
serenamente
seu rosto.

segunda-feira, 20 de maio de 2013

Mãe

Hoje acordou um dia manso
Mãe me trouxe um vestido,
vestido de ficar dentro de casa,
branco de flor pintada.

Todo dia,
eu vou aprendendo
a apaziguar uma dor.

Eu me sentei junto d'ela
na mesa pequena da cozinha
- ali não cabe uma fome sequer -
E fui ajudar a fazer biscoito.

Todo dia, uma voz se cria
pr'eu saber dar corpo a ela.

Ali na cozinha
- templo e masmorra da família -
Eu vou conhecendo o que ela não diz.
Vou saber, um dia,
amar uma mãe que não me entende,
lavar a louça e guardar
pra que ela possa dormir feliz.
Fazer coisas sem nenhum sentido
pelo sentido de ter paz.
Vou compreender
profundamente
que meu silêncio
nutre uma culpa
que é só minha
e de niguém mais.
Que uma fúria, se torta,
não presta para fazer nada.

Vou anotar
certas preciosidades.
Que um biscoito,
para ser macio,
é primeiro domar os dragões
e depois pôr menos açúcar.

Um dia, eu alcanço
a velhice pueril
de minha mãe.

Pedir "bença"
todo dia,
sem esquecer
nem desprezar.
Saber que eu sou pequena perto dela.
Saber que o mundo é maior que eu.
Agradecer.

Todo dia
a gente aprende
a apaziguar uma dor.

sábado, 27 de abril de 2013

1.

Se eu te disser o porquê dessas unhas negras, tu não acreditarias. A rígida entrelaçadura das carnes, o corpo enfermo de tanta brasa, estes calos internos, tudo são mistérios a acumular-se nas vigas da casa. Mais quatrocentos ocultamentos para minhas palavras sem nome. Como as cores que os olhos não veem e permanecem, quasevivas, quasemortas, no indizível.
Meus dentes alheios de comunicação vigorosa - os frutos são sempre tardios - insistem nos maços de flores. Mastigo mil pétalas e, ainda precária, deito-me aos pés das roseiras. Intento tocar o corpo da vida que me escapa, correr ao jardim e cavar as madrugadas. As rosas me olham. Quando é que me apartei do mundo? Então atravessa, quase inocente ao negrume da noite, aquela ave soberba, de penas tão impossivelmente escuras que demovem minha melancolia. Aquela ave - penso eu - tem a cor do exato momento em que à noite as mulheres são mais solitárias.

2.

Se eu fosse uma ave, não me aperceberia de mim e talvez não trouxesse rígida a carne, o corpo enfermo, o peso devasso das dúvidas humanas. Chocaria meus ovos de paciência porque assim seria. Não teria de explicar o negro das unhas. O coração é um pedregulho que, longe do diamante, não lapidou-se, sofreu muitos golpes de marreta quando pedra e reduziu-se. Afasto assim as lágrimas pensando no coração-pedregulho; gesto mais sem razão, como sem razão são as aves. Degolei todas aquelas rosas para comê-las. Porque vejo eu razão nas rosas? Afinal, se há coisas sem nome, é que passo muito tempo a imaginá-las. Se não o fizesse, elas não haveriam. Porque me fizestes, Deus, mais pergunta e menos mulher?

3.

Se um dia eu morrer de repente, afundem-me rápido debaixo das roseiras. Fiz da morte de minhas flores um cobertor. Quero ter o corpo morno para sempre.

domingo, 31 de março de 2013

A fibra do coração é a mesma

Os tempos são tristes
para os que buscam
a consistência dos sonhos.
É muito estranho,
sobretudo, aterrador
saber que há gente
a recusar o espetáculo
de amor
dos humanos.
Eu amo
Dois amam
E se alguns carregam os
mesmos órgãos sexuais
são poderes magníficos
da natureza diversa.
A fibra do coração
é a mesma.
Ninguém detém
o pensamento
de Deus.
É sofrimento ver
um animal se debater
contra o curso
poderoso
de um rio.
A suposta ordem natural das coisas
É uma suposta
ordem
natural.
Há sinais
- ininteligíveis para os que não ousam compreender -
de que há metamorfose
no tempo,
Quem não o acompanha
acaba por ser tragado
pela poeira das eras.

quinta-feira, 21 de fevereiro de 2013


Doce Jurema, 

Sucedeu-me que mal completos meus primeiros dois meses cá onde estou, espatifei no sofá por puro tédio. (Sim, este sofá é a representação suprema de todo o tédio humano). Por isso recorro ao papel-e-caneta para alumbrar a minha companheira das mais torpes digressões.

Já te disse o quão desconfortável é tudo em minha casa? A mistura extraordinária do maior número de variações decorativas que uma mãe é capaz de fazer; as ondas constantes de poeira que adentram portas e janelas; a secura que racha-nos narizes e bocas e o pior (sim, o pior!): a ausência total de privacidade. Caso esquisito é que hoje, já consternada, estanquei minha rabugice por tanto apelar minha sábia mãe: “se te derem limão, faça um limoeiro”.

Atrevo-me a externar as causas de minha estadia ter-se tornado mais suportável. Como havia dito, a privacidade em minha casa é um simples mito, não existe de todo. Não há muros entre as casas e dividimos com a vizinha uma de nossas paredes, de modo que tudo que lá se passa nos é audível e vice-versa (este vice-versa é um tanto desinteressante, não?). Neste caso muito pouco inteligente da arquitetura, não há, em verdade, bisbilhoteiros legítimos. Excede-se a minha Mãe Maria (a empregada) quando estaca junto da porta lateral da cozinha. “Tá de butuca, Mãe Maria?” Ela volta a si e finge bater o bolo. É fato que a programação televisiva é deveras chata e a vizinha protagoniza verdadeiros Casos de família muito mais instigantes. No mais, estamos isentos de culpa. Temos ouvidos, ora! Se te contar a última, você nem poderá acreditar (se não fossem estes preciosos ouvidos que a terra há de degustar). A trama é cabeluda. A vizinha, de nome Marília, é separada do marido e tem duas filhas quase crianças. Carminha, que não deve ter ainda caídos todos os dentes de leite, e Jussara, a que todos chamam "a diaba", tem treze anos e dá indiscriminadamente aos guris da cidade. Sim, Jurema, não esteja boquiaberta, por estas bandas também se ouve Geni e o Zepelim. Cá entre nós, critério é fanfarrice. Imagino sua cara de "certa é ela" e as nossas gargalhadas de passarinhas bêbadas. O fato é que a mãe está a por os bofes para fora de tanta raiva de Jussara, não é que a doidinha engravidou? Quase todos os dias ouve-se a vizinha maldizer a criança e, logo em seguida, ameaçar escorraçar a filha de casa. As irmãs se uniram contra o desatino da mãe, só conversam entre si, confabulam, Carminha promete apadrinhar a sobrinha e diz que cuida, fala em fuga, Jussara-maluca pensa em tirar, diz que odeia o pai ("aquele minino zé ninguém") e quer ser sozinha, só ela e a irmã. Uma confusão!

Outro dia, chegando em casa, vejo Mãe Maria gesticulando, quase apavorada, numa conversa de porta com Jussara. A menina revirava os olhos esboçando indiferença. Mariazinha é mesmo abusada. Foi pedir (pois é, quase implorar) para que Jussara não matasse o próprio filho, ouvi coisas como “pobrezinho” e “santo Deus!”. Eu via a hora da "diaba" soltar uns bons desaforos na cara da enxerida, mas Jussara, tão avoada, só bocejava. Entrei sem palpites, seria demais. Depois de curto tempo, ela voltou lacrimosa e fui perguntar o que havia acontecido. Ela disse que a menina era sem coração de verdade, ao invés de ouvir o que aconselha o Nosso Pai, disse ao final que Mãe Maria procurasse uma boa caceta (!!!). "Jesus seja louvado!". Mãe Maria e seu olho esbugalhado. Segurei meu riso com muita destreza. Difícil, Jurema, difícil! 'De geniosa a genial: uma história de Jussara.' pode ser um título de meu livro.                                                                                                                                
Todos aqui em casa estamos apreensivos na expectativa desta novela. Correm rumores de que o pai da criança - um meninote ajudante de mercado - quer raptar Jussara para que nenhuma desgraça seja feita. No desenrolar da trama, envio-lhe novidades quaisquer. Enfim, está justificado o meu apaziguamento? Tenho material suficiente para trabalhos antropológicos. Esteja bem, querida.

Saudades,
Ellenalva.

terça-feira, 5 de fevereiro de 2013

É um tomar osadia...


“Mas essa cidade ao menos vive, tem cor e tem barulho. Não se reduz à mornidão d’um chão vermelho e seco como o do Distrito.” Ouve-me repetir acalorada o turista insatisfeito. Aponta-me tantos defeitos e precariedades que fica difícil manter meu apelo à poesia. Mas sim – insisto – há um brilho que sobrevive e respira solene por sobre os ares fétidos da cidade. Um perfeito caos de vagamundos. Quem não conhece a beleza no contraste sequer será capaz de reconhecer plenamente a beleza na perfeição.
Confesso: não foi tão simples me acostumar. Salvador é mais afetuosa, digamos assim. É raro alguém não puxar conversa numa longa viagem de ônibus, seja por tédio ou força do hábito, um motorista que deseja bom dia e boa sorte, a baiana que te chama ‘linda meu amô’. É um “tomar osadia” constante, que não significa propriamente invasão, nem recai no clichê da hospitalidade baiana. É mais um comunicar-se espontaneamente, para além do automatismo de uma metrópole. As pessoas se encontram, e as pessoas se misturam.
 Seria talvez trabalhoso (ou ainda, perverso) fazer alguém que com nada se encantou neste lugar perceber a vida circundante que tento descrever. “Não, você não precisa me lembrar quem está fora das cordas no carnaval, quantos casarões aos pedaços, o trânsito ignóbil, a família Magalhães.” A paixão por uma terra nunca é cega. Quanto mais afeição, mais profunda a consciência, afinal estar num lugar é fazer parte dele. Tramita-se por suas veias, tem-se lúcidos todos os sentidos. E principalmente: “Não é disso que falo… Não quero um visitante consternado ao meu lado. Entenda”.
 A conversa era banhada com goles de cerveja, que, entusiasmados, esquecíamos de beber. Um amigo fastioso das minhas elucubrações e da resistência do brasiliense pergunta se queremos criar peixes. A essa altura, o fiel combatente me chamava Policarpo ao mesmo tempo em que se perguntava por que diabos a fila do acarajé parecia não sair do lugar, eu retruquei indagando se acaso ele já havia provado o acarajé da falecida Dinha. “Essa agora é realmente instigante, uma defunta baiana ou uma baiana defunta?” “Ora, digo, pois, que o amigo não perca a oportunidade de comer um acarajé feito nos céus”.
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Crônica produzida especialmente para Torcicolo do caboclo

quarta-feira, 9 de janeiro de 2013

Exercícios Pérfidos II - O melindroso

Depois que descobri, pensei na cólera e no silêncio. A cólera é uma loucura breve, então não precisei desperdiçar minha poesia. Decidi não escrever. Passei muito tempo sem compreender porque não conseguia gostar das gaivotas, das âncoras, mas percebi que é tudo muito ruim mesmo. Literatura ruim esfria meu café. Prefiro me ocupar de pintar as unhas. Não tenho problemas. Não carrego um mundo incomunicável e fora dos limites da "normalidade". Meu mundo sou eu. Então pensei no silêncio. Como o tenho saturado! Como é difícil arrancar de meus ossos as verdades que deveriam ser ditas. Ora. Elas deveriam ser ditas? E acaso toda verdade necessita de um propósito? Fato é que não se trata de destilação de veneno. Meu coração apodrece, é simples. Há uma sujidade difícil de ser lavada, preferiria pintar as unhas, mas preciso continuar.
Saulo, preciso te contar uma coisa, uma anunciação a toda a gente (porque é mais perverso ainda saber sozinha). Não há docilidade nenhuma, sim sim, vamos beber absinto, a vida é nada. Não, vamos ficar em casa e rir à toa, já passou, podemos escrever nosso livro sozinhos. Em verdade vos digo, você e essas amoras, a contradição é bem mais embaixo. Não esteja pasmado, é muito mais coerente uma vileza que é mais vileza e menos afabilidade. Há um nítido melindre, você reparou? Podemos chamá-lo de senhor melindroso, além de muitas outras coisas. Um melindre tempestuOso, hiperbÓlico. Há uma agressividade animalesca. Preconceitos terríveis, carnudos, entranhados. A mim, foram absolutamente aniquiladores (eu era gente cega, Saulo, acalma-te). Agora preciso usar palavras que não gosto (isso é tão custoso), mas não encontrei equivalência que bastasse: há hipocrisia e falsidade. Gentileza? Em que parte? Há uma fuga da verdade do corpo que irrita desoladoramente. Há uma infinidade de desenganos que deixam-nos doentes. É preferível pintar as unhas, já disse. Tudo bem, falemos de José. Mas como é possível? Ainda me deparo meio estarrecida com esse como é possível, entende? Então vamos limpar o coração. Camomila, aspargo, doce de caju e chocolate. Escolhi o azul, você gostou?
Depois que descobri, estive doida, porque não há nada aqui que seja feito de ferro. Não tenho vergonha de sentir e dizê-lo. Mas meu mundo estará são dentro de duas semanas, então não precisei desperdiçar meus poemas. Amores nunca serão desperdiçáveis. E as minhas unhas ficaram tão lindas!