terça-feira, 5 de fevereiro de 2013

É um tomar osadia...


“Mas essa cidade ao menos vive, tem cor e tem barulho. Não se reduz à mornidão d’um chão vermelho e seco como o do Distrito.” Ouve-me repetir acalorada o turista insatisfeito. Aponta-me tantos defeitos e precariedades que fica difícil manter meu apelo à poesia. Mas sim – insisto – há um brilho que sobrevive e respira solene por sobre os ares fétidos da cidade. Um perfeito caos de vagamundos. Quem não conhece a beleza no contraste sequer será capaz de reconhecer plenamente a beleza na perfeição.
Confesso: não foi tão simples me acostumar. Salvador é mais afetuosa, digamos assim. É raro alguém não puxar conversa numa longa viagem de ônibus, seja por tédio ou força do hábito, um motorista que deseja bom dia e boa sorte, a baiana que te chama ‘linda meu amô’. É um “tomar osadia” constante, que não significa propriamente invasão, nem recai no clichê da hospitalidade baiana. É mais um comunicar-se espontaneamente, para além do automatismo de uma metrópole. As pessoas se encontram, e as pessoas se misturam.
 Seria talvez trabalhoso (ou ainda, perverso) fazer alguém que com nada se encantou neste lugar perceber a vida circundante que tento descrever. “Não, você não precisa me lembrar quem está fora das cordas no carnaval, quantos casarões aos pedaços, o trânsito ignóbil, a família Magalhães.” A paixão por uma terra nunca é cega. Quanto mais afeição, mais profunda a consciência, afinal estar num lugar é fazer parte dele. Tramita-se por suas veias, tem-se lúcidos todos os sentidos. E principalmente: “Não é disso que falo… Não quero um visitante consternado ao meu lado. Entenda”.
 A conversa era banhada com goles de cerveja, que, entusiasmados, esquecíamos de beber. Um amigo fastioso das minhas elucubrações e da resistência do brasiliense pergunta se queremos criar peixes. A essa altura, o fiel combatente me chamava Policarpo ao mesmo tempo em que se perguntava por que diabos a fila do acarajé parecia não sair do lugar, eu retruquei indagando se acaso ele já havia provado o acarajé da falecida Dinha. “Essa agora é realmente instigante, uma defunta baiana ou uma baiana defunta?” “Ora, digo, pois, que o amigo não perca a oportunidade de comer um acarajé feito nos céus”.
_________________________________________________________
Crônica produzida especialmente para Torcicolo do caboclo

Nenhum comentário: