terça-feira, 4 de outubro de 2022

Corto os cabelos como quem prepara um voo

Isso é para que me liberte do peso de agradar

É para que esteja com a face nua

e a boca apurada de desejos


Quero me despojar de todas as mulheres 

que fui ensinada a ser

Corto os cabelos num rito 

Inamovível

Jogo no mais fundo dos rios esse véu de culpas

Deixo-as ali esquecidas 

estas santas senhoras nossas

Despeço-me


A fruta vermelhecendo 

Quer escorrer teu sumo


Parto as correntes porque tenho em meus braços

esta força ancestral

Arremesso os medos

Virei bravia

Mulher selvagem

e vou

honrar o compromisso de ser eu mesma

A partir de hoje

A partir dos gestos, apesar de.

Vou honrar o compromisso de ser eu mesma



quarta-feira, 17 de agosto de 2022

Vem morar no mar comigo um instante
Quero te mostrar
que amar é não morrer
Vem beber o sol e
molhar-se nas nuvens

Nós ficaremos assim
O meu peito
nas suas coxas
Mergulhando nas bocas todas

Vem morar no meio do meu corpo
sem fazer casa
Sem esquecer
que somos sós
E só deste modo podemos ser

Essa morada,
feita de areia,
vai perecer
Assim como a vida, amor
Assim como o gozo, 
Assim, a chama embaixo da chuva

Vem!
Que a vida é breve
e cíclica 
Amar é saber


terça-feira, 12 de julho de 2022

A mão pesa sobre a folha
e os olhos ficam como navios, aquosos,
que se perderam ao partir

Preciso dizer
e a palavra seca na garganta
Preciso dizer
O que é o corpo de uma mulher no mundo?
Quero bradar
Mas a dor me atira ao abismo da loucura

Um homem estuprou uma mulher
Um homem - sempre um homem -
violentou uma mulher sedada
Um homem - mais de uma vez - 
violou uma mulher que dava à luz.
Um homem, um médico, arrancou a alma de uma mãe
no exato momento em que ela iria renascer 
Um portal de vida que se abriu para o inferno

Ele sabe
Eles sabem
que estão autorizados,
tacitamente autorizados,
a nos matar

Mas o horror pior que a morte,
pior que o abandono,
é o aniquilamento de qualquer dignidade,
é o horror que tortura tanto a carne
a ponto de fazê-la desejar a inexistência.

Não quero ter olhos
nem ouvidos
No entanto, é impossível não arder
no fogo que queima as minhas irmãs

Preciso dizer
Por cima e além das altas chamas
O que é o corpo de uma mulher no mundo?



domingo, 19 de junho de 2022

 Leona, a gata que nasceu dentro do meu quarto, é, para mim, uma grande lição de amor. Se eu tomá-la nas mãos, mesmo com gentil calma, ela logo trata de sair, empurrando sutilmente meu peito com sua pata. Ela não se deixa estar em nenhum lugar que a tenhamos posto por nós mesmos. No entanto, e não é difícil notar, ela anda em meu colo todo o tempo, basta que eu me sente ou deite em qualquer lugar e não tenha nenhum impedimento para seu pulo sagaz. Basta que eu deixe os braços soltos e receptivos. Ela sempre atende aos meus chamados, em nada parecida com os cães, tão ansiosos. Ela move seus lindos olhos cor de limão em minha direção e estende longamente o gesto, antes de se levantar. Ela pondera antes de agir.

Quando estou assim agraciada com o carinho de tão espetacular animal, preocupo-me em não desapontá-la, procurando não sair do lugar. Quando Leona decide se afastar, não hesita, ergue-se, estica a coluna, pula magistralmente no chão, vai subir na estante mais alta da casa. Deixa-me sem cerimônias.

Leona me comove com sua honra de viver. Seu amor é naturalmente antes por si mesma, só assim pode ser forte o suficiente para desdobrar-se ao outro. Leona ama porque é livre.


terça-feira, 17 de maio de 2022

Se eu digo, entenda,

Eu sou

Se faço minha voz atravessar o ar,

Está posto.


Meu desejo 

Sou eu

O meu gosto

Sou eu

O que toco

O que vejo

O que sinto

O que falo

Sou eu 

As minhas mãos, as minhas pernas, os meus olhos, os meus cabelos, o meu cheiro, o meu sangue

Minha percepção

Meu juízo

Meu acontecer no mundo


Ninguém ditará meu percurso 


Não queira me tirar de mim 

Eu sou minha

domingo, 20 de março de 2022

Queimar todas as referências ao amor romântico

Banir dos livros, dos filmes

Criar outros livros e filmes

Queimar a monogamia

Deixá-la arder

Queimar o patriarcado

Queimar a cultura

Nenhum deus

nenhum falso amor

nenhum lar

Nada deve resplandecer no centro da clareira

Apenas você

Você

Soberana

Você

Com os pés fincados nas pedras

Contra a correnteza 


Deve crescer 

A chama que a tudo consome

Crescer

Ruir muros, levar destroços 

para, então, reflorestar 

quinta-feira, 17 de março de 2022

 O verdadeiro poder é

não ter poder em nenhuma relação

Afastar o poder

Matar o poder com as unhas

Deixar o poder sangrar

Eu não posso com você

Você não pode comigo

Poder é posse

e nós somos potência

domingo, 13 de março de 2022

Agora 

que não há nenhum homem

roubando-me espaços da alma

Sinto-me como se grávida

Suculenta de vida

a molhar toda a casa


Onde quer que me deite

deixo uma água cálida

Meus lençóis,

oceanos de leite,

À noite sou toda imersa




quarta-feira, 9 de março de 2022

Quando você decidir se erguer e caminhar de volta para si

Quando você lentamente mover o corpo e dançar seu desejo em meio à chuva

Quando você escolher retomar a vida, o ar e o amanhecer

Eles dirão louca, puta, bêbada, escória,

Como ousa?

E eu responderei

Eu sou a porra de um guepardo

Eu sou indomável


Umas mãos pesadas, masculinas,

Repousam-lhe nas pernas

A boca que roça a orelha, concluo,

é também de seu pai

Num bar qualquer, à meia-noite

Uma criança, no colo, 

talvez nove anos

Sentada, em família


Dedos grossos alisam suas coxas

Como o mais natural dos gestos

E ninguém percebe este escândalo


Amavelmente, este homem de cabelos brancos

Há poucos metros

Ensina à sua pequena

O que é o corpo da mulher no mundo

Uma propriedade para ser

Sutilmente devassada

Como bem quer o homem

Mesmo que pai

E eu, apenas eu, não evito olhar 

Por que sei, com meus olhos de fogo,

Que este homem de cabelos brancos

Tem que queimar