segunda-feira, 19 de setembro de 2016

A primeira vez que a Maria deixou-se beijar foi por um dos pescadores. Sentiu um amargo que não era um amargo de boca. Um homem que era homem demais. Embora ele fosse cheio de pressas, a Maria queria conhecer seu sabor. As pessoas se beijam, abrem as bocas umas das outras e entram com tudo dentro, parece que aguardam o céu. As mulheres da praia faziam cara de um nojo dissimulado, enrolando os cabelos, os pescadores faziam cara de quem é besta. Desse modo faziam suas coisas de adulto.
Um dia, ela, a Maria, que nascera livre, se misturou com aquelas mulheres e foi escolhida através de uns gestos sutis e ridículos do Adamastor. Ele esfregou-se na Maria com tanto desejo que ela sentiu verdadeiro nojo. Ficou sem saber se havia beijado ou se fora beijada. O Adamastor tinha rudeza nos braços e medo nas palavras. Ela contava 14 anos, ele, 41. Um homem parecia afinal ser uma pedra do mar, esmagaria um peixe miúdo como a Maria sem muitas dificuldades. Pelo desprezo que lhe foi crescendo ao vê-lo como desesperado, ela pensou que o homem era uma pedra de sal, basta que ponham-lhe água a correr por cima, acaba-se. A Maria pensou que as mulheres eram água.
Adamastor, pele viscosa, boca salgada, ideias frouxas. Chegou a pedir que a Maria viesse morar com ele. "Para quê?". "(...)". "Adamastor, eu perguntei para quê você me quer morando na sua casa se tenho eu a minha. Que farei eu lá?". "Para que você tenha uma vida, eu pensei..." "Eu tenho uma vida, não vê? Sou gente! Que me falta?" O pobre homem tremelicou e não soube dizer mais nada. A Maria deu por acabado.
Depois desse, vieram outros homens dos quais sentia a mesma pena, abria-lhes a boca sem muitos sentimentos, apenas por curiosidade. Mas estava cansada. A Maria, órfã do mundo, era dada como perdida. Perdida de que modo? Estava bem encontrada, pescava, comia, limpava, nunca havia saído da praia, não era possível entender. Diziam impiedosamente que a Maria, por não saber de pai nem mãe, havia chegado naquela ilha ainda criança, enredada numa espécie de jangada mínima cheia de farrapos, guiada pelas ondas. Pois perdida eu era antes, respondia para si mesma.
Uma vez, um dos homens, ao beijar-se usando a boca da Maria, tentou enfiar as mãos grandiosas dentro de suas saias. Ela o achou esquisito e, sem nenhum porquê a mais, mandou que fosse embora o mais rápido que pudesse. Ora, já bastava de coisas sem sentido. Beijar aqueles homens era como o pensamento que passa pela cabeça nas horas laboriosas, uma coisa vazia. Ele saiu assustado praguejando, chamou-a de nomes que ela não conhecia.
Depois de tempos, que para a Maria já não contavam, aportou um barco distinto na praia. A Maria acabava de erguer sua cesta abastada de pesca quando notou um ar de incompreensão. Do barco, tão grande e vistoso que não se soube que nome realmente tinha, saiu uma criatura de outro mundo, todos pensaram atônitos, um ser que tinha aparências de mulher e jeitos e roupas de homem, uma face corada de anos além-mar, o corpo forte e pequeno como um dia de sol chuvoso, sustentava calças e camisão fresco debaixo de um chapéu de abas enormes.
Quando avistou a aldeia, precipitou-se acenando com ambas as mãos, as pessoas se entreolharam buscando na memória alguém que se assemelhasse àquela criatura. Nomi pôs-se a acenar com o chapéu, deixando liberta uma longa cabeleira castanha. Ouviu-se um suspiro de quase alívio, alguns tiveram a certeza de que se tratava de uma mulher e acenaram, tímidos, de volta.
A Maria, muito meio intrigada ainda, colocou sua cesta na cabeça e foi para casa com aquela visão, tinha ela sua vontade de acenar também, o brilho irradiante daquela... pessoa, era uma pessoa linda.
Com o passar dos dias, criou-se ali larga história desvairada para a origem de Nomi. Diziam que ela era uma coisa de mundos obscuros, de lá onde o mar acaba, formando o abismo. Apesar dos cabelos e estatura quase atestarem seu sexo, era impossível precisar se sua silhueta correspondia a um corpo feminino, as vestes de Nomi eram sempre largas, quando ela rodava pelas ruas da feira, cada um perscrutava uma parte sua com fins de chegar a um veredito. "Hoje ela se inclinou para medir minhas frutas e quase-quase percebi." "Desisto, há panos demais." "Eu já disse, note o queixo". Os feirantes resmungavam com certo grau de despautério no final do dia, entre as cascas de fruta e restos de peixe, cada vez mais confusos e ignorantes. De sua banca, a Maria pensou que afinal não era ela o assunto. Diziam que Nomi era fruto de uma feitiçaria, enviada para confundir tanto as cabeças até desmiolar a todos, uma praga feita pelo filho da Yolanda, aquele maricas que fugira. Alguns arriscavam com hipóteses convictas de que se tratava de um anjo, e anjo não tem sexo. “Impossível!” Retrucavam. “Onde estão as asas?”. Ninguém sabia dizer por que ela estava ali, nem o que fazia, nem quem era, mas todos estavam tomados de tal pânico que a simples ideia de perguntar passou longe da ilha.
Bolaram o plano de espiar Nomi no banho, todos os dias ela acordava de sua sesta com mil olhos esbugalhados na janela de sua embarcação. Começou a cansar-se de tanta especulação. Começou a cansar também a sua gentileza. Levantou-se mais exaurida do que quando se deitara, uma fresta luminosa que vinha do teto cegou seu olho por um segundo. Nomi sacudiu a cabeça.
Na feira, os olhares de sempre, serviu-se de tangerina, sentada num caixote. O vendedor mal olhara em seu rosto, mais um sorriso inútil. A brisa misturava os fios de seus cabelos aos gomos da fruta, ao virar-se para trás, lá estava a Maria a olhar longamente o movimento que o vento desenhava nos cabelos de Nomi e, flagrada, corou. No interior de ambas surgiu uma dor de alegria inesperada. Era a lagoa cristalina no meio do deserto e Nomi tinha tanta sede. Aproximou-se para olhar os peixes da Maria, postas prateadas cintilavam na mesa. Elas trocaram palavras invisíveis e souberam no mesmo instante, havia uma redoma de ternura naquele encontro.
Por isso não puderam perceber como todas as bocas se abriram, como todos os olhos se arregalaram, o riso cruel das crianças mais velhas, o escárnio das mulheres e o ódio dos homens. Não perceberam, deram as mãos e seguiram.
Depois daquele dia a Maria amanheceu vivaz, a vida vestia outra cor. Nomi reacendeu o sorriso e pôde suportar melhor, contou que queria rodar o mundo inteiro, planejaram viagem. Amaram-se. Tudo em Nomi era diferente, a Maria precisou aprender o que era boca, mão, pernas, o que era corpo. Aquela mulher, maltratada pelos braços rudes de tantos homens, amou. Amaram-se demoradamente, como quem regressa do exílio.
Uma das noites estendeu-se tanto que trouxe o dia. A Maria perdeu seu horário de pesca, mas não lamentou, tinha muita felicidade. Levantou-se para receber o sol, e finalmente entendeu porque a chamavam perdida, era que durante todos esses anos estava apartada de Nomi. 
Seguiram as duas para o ritual matinal da feira e tamanho foi o espanto. A banca da Maria tinha sido devassada, ela enxergou pela primeira vez os olhares de repulsa. Mas era a gota que faltava no cálice de dores de Nomi. A cólera e os gritos foram breves como um raio. Bastava. Atiçara cães famintos. Foram surgindo pedras e armas improvisadas, o espetáculo estava quase pronto. A Maria tentou lutar contra quem as afastava como um afogado que engole cada vez mais água, exauriu-se, perdeu os sentidos, jogaram-na como fruta podre nos braços da praia. 
A Maria, que nascera livre, acostumada com o correr do mundo, antes perdida depois encontrada, a dona dos peixes, a dona de si, morria por dentro. Abriu os olhos cheios de areia apenas para cegar-se com a luz inebriante que subia ao encontro das nuvens, ela jura e conta até hoje, dois espíritos brilhantíssimos flutuavam a cima dos homens, da carne e do ódio; haviam se desprendido do corpo inerte de Nomi e subiam entrelaçando-se para o infinito.