quinta-feira, 21 de fevereiro de 2013


Doce Jurema, 

Sucedeu-me que mal completos meus primeiros dois meses cá onde estou, espatifei no sofá por puro tédio. (Sim, este sofá é a representação suprema de todo o tédio humano). Por isso recorro ao papel-e-caneta para alumbrar a minha companheira das mais torpes digressões.

Já te disse o quão desconfortável é tudo em minha casa? A mistura extraordinária do maior número de variações decorativas que uma mãe é capaz de fazer; as ondas constantes de poeira que adentram portas e janelas; a secura que racha-nos narizes e bocas e o pior (sim, o pior!): a ausência total de privacidade. Caso esquisito é que hoje, já consternada, estanquei minha rabugice por tanto apelar minha sábia mãe: “se te derem limão, faça um limoeiro”.

Atrevo-me a externar as causas de minha estadia ter-se tornado mais suportável. Como havia dito, a privacidade em minha casa é um simples mito, não existe de todo. Não há muros entre as casas e dividimos com a vizinha uma de nossas paredes, de modo que tudo que lá se passa nos é audível e vice-versa (este vice-versa é um tanto desinteressante, não?). Neste caso muito pouco inteligente da arquitetura, não há, em verdade, bisbilhoteiros legítimos. Excede-se a minha Mãe Maria (a empregada) quando estaca junto da porta lateral da cozinha. “Tá de butuca, Mãe Maria?” Ela volta a si e finge bater o bolo. É fato que a programação televisiva é deveras chata e a vizinha protagoniza verdadeiros Casos de família muito mais instigantes. No mais, estamos isentos de culpa. Temos ouvidos, ora! Se te contar a última, você nem poderá acreditar (se não fossem estes preciosos ouvidos que a terra há de degustar). A trama é cabeluda. A vizinha, de nome Marília, é separada do marido e tem duas filhas quase crianças. Carminha, que não deve ter ainda caídos todos os dentes de leite, e Jussara, a que todos chamam "a diaba", tem treze anos e dá indiscriminadamente aos guris da cidade. Sim, Jurema, não esteja boquiaberta, por estas bandas também se ouve Geni e o Zepelim. Cá entre nós, critério é fanfarrice. Imagino sua cara de "certa é ela" e as nossas gargalhadas de passarinhas bêbadas. O fato é que a mãe está a por os bofes para fora de tanta raiva de Jussara, não é que a doidinha engravidou? Quase todos os dias ouve-se a vizinha maldizer a criança e, logo em seguida, ameaçar escorraçar a filha de casa. As irmãs se uniram contra o desatino da mãe, só conversam entre si, confabulam, Carminha promete apadrinhar a sobrinha e diz que cuida, fala em fuga, Jussara-maluca pensa em tirar, diz que odeia o pai ("aquele minino zé ninguém") e quer ser sozinha, só ela e a irmã. Uma confusão!

Outro dia, chegando em casa, vejo Mãe Maria gesticulando, quase apavorada, numa conversa de porta com Jussara. A menina revirava os olhos esboçando indiferença. Mariazinha é mesmo abusada. Foi pedir (pois é, quase implorar) para que Jussara não matasse o próprio filho, ouvi coisas como “pobrezinho” e “santo Deus!”. Eu via a hora da "diaba" soltar uns bons desaforos na cara da enxerida, mas Jussara, tão avoada, só bocejava. Entrei sem palpites, seria demais. Depois de curto tempo, ela voltou lacrimosa e fui perguntar o que havia acontecido. Ela disse que a menina era sem coração de verdade, ao invés de ouvir o que aconselha o Nosso Pai, disse ao final que Mãe Maria procurasse uma boa caceta (!!!). "Jesus seja louvado!". Mãe Maria e seu olho esbugalhado. Segurei meu riso com muita destreza. Difícil, Jurema, difícil! 'De geniosa a genial: uma história de Jussara.' pode ser um título de meu livro.                                                                                                                                
Todos aqui em casa estamos apreensivos na expectativa desta novela. Correm rumores de que o pai da criança - um meninote ajudante de mercado - quer raptar Jussara para que nenhuma desgraça seja feita. No desenrolar da trama, envio-lhe novidades quaisquer. Enfim, está justificado o meu apaziguamento? Tenho material suficiente para trabalhos antropológicos. Esteja bem, querida.

Saudades,
Ellenalva.

terça-feira, 5 de fevereiro de 2013

É um tomar osadia...


“Mas essa cidade ao menos vive, tem cor e tem barulho. Não se reduz à mornidão d’um chão vermelho e seco como o do Distrito.” Ouve-me repetir acalorada o turista insatisfeito. Aponta-me tantos defeitos e precariedades que fica difícil manter meu apelo à poesia. Mas sim – insisto – há um brilho que sobrevive e respira solene por sobre os ares fétidos da cidade. Um perfeito caos de vagamundos. Quem não conhece a beleza no contraste sequer será capaz de reconhecer plenamente a beleza na perfeição.
Confesso: não foi tão simples me acostumar. Salvador é mais afetuosa, digamos assim. É raro alguém não puxar conversa numa longa viagem de ônibus, seja por tédio ou força do hábito, um motorista que deseja bom dia e boa sorte, a baiana que te chama ‘linda meu amô’. É um “tomar osadia” constante, que não significa propriamente invasão, nem recai no clichê da hospitalidade baiana. É mais um comunicar-se espontaneamente, para além do automatismo de uma metrópole. As pessoas se encontram, e as pessoas se misturam.
 Seria talvez trabalhoso (ou ainda, perverso) fazer alguém que com nada se encantou neste lugar perceber a vida circundante que tento descrever. “Não, você não precisa me lembrar quem está fora das cordas no carnaval, quantos casarões aos pedaços, o trânsito ignóbil, a família Magalhães.” A paixão por uma terra nunca é cega. Quanto mais afeição, mais profunda a consciência, afinal estar num lugar é fazer parte dele. Tramita-se por suas veias, tem-se lúcidos todos os sentidos. E principalmente: “Não é disso que falo… Não quero um visitante consternado ao meu lado. Entenda”.
 A conversa era banhada com goles de cerveja, que, entusiasmados, esquecíamos de beber. Um amigo fastioso das minhas elucubrações e da resistência do brasiliense pergunta se queremos criar peixes. A essa altura, o fiel combatente me chamava Policarpo ao mesmo tempo em que se perguntava por que diabos a fila do acarajé parecia não sair do lugar, eu retruquei indagando se acaso ele já havia provado o acarajé da falecida Dinha. “Essa agora é realmente instigante, uma defunta baiana ou uma baiana defunta?” “Ora, digo, pois, que o amigo não perca a oportunidade de comer um acarajé feito nos céus”.
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Crônica produzida especialmente para Torcicolo do caboclo