sábado, 29 de maio de 2010

História obliterada da mulher que é mulher ou Apelo Discursivo

Quem come sou eu!

                                        




                                                 ("I have the pussy, so I make the rules")

sábado, 15 de maio de 2010

Puedo escribir los versos más tristes esta noche*

1.
Foi na banheira, essa coisa nada cotidiana, dava tempo pra refletir, ás vezes sobre o dia, ás vezes sobre filosofia, ás vezes sobre a própria vida, é quando se chega a todas as conclusões mais fundamentais, na banheira quase esquecida, essa coisa de luxo ou de livros, imerso nos vapores adocicados, com as pontas dos cabelos boiando na espuma, vagueando. Foi assim, não se pode dizer que de repente, que constatou sobre os vários cafés oferecidos a ela, alguns textos anônimos tão amargamente dedicados, o tempo embaraçoso, o dizer que de tão meticuloso foi-se parco. Tudo em que ela estava perto, era uma pontadazinha aguda que saltava sem querer, agora sabe. Pousou a mão no rosto, compenetrado. E o que se faz agora quando se sabe? Só o sofrer que ganha algumas gotas de consciência. E olhou no espelho sua forma míope, passou os dedos na superfície pra que se fizesse nítido. E pra que quis desembaçar aquela figura tão feia? Desejou não ter aquele velho espelho, nem espelho nenhum no mundo.

2.
No primeiro dia achou estranho. Quis estar (e fugir sofregamente quando estivesse) com ela. E se a perdia de vista, a procurava debilmente pra depois se afastar. Como um louco, pensou. Repudiou cada colega que se aproximava da mesa dela, pedir uma caneta? Um pedaço de papel? Queriam todos comê-la! Arrancar os botões de sua camisa. Animais! Ele enojava-se. E impregnava de mais e mais claridade a imagem da maior singeleza que lhe tinha: ela era uma aura branca, ela tinha o corpo mancebo, jamais tocado por homem algum. Estava adormecida, eterna e eterna, no alto da maior montanha da Terra. Durante todos os seus gestos ele a estava a observar, a adivinhar onde tocaria seu braço e qual o desenho que fariam os dedos ao discar o telefone. Não trabalhou, estava feliz - apesar de apesar - por tê-la de amor. Amor, essa palavra misteriosa, que guarda todo tipo de simpatia ou paixão e, solerte, segreda toda dor.

3.
No sétimo dia se enfureceu. Tenho tudo dentro de mim a procurar por ela, tudo grita endoidecido de não ser escutado! Como não se pode fazer, ao menos, tangível? Achável, que seja! Uma pequena disposição, nem que brusca, de estar para ouvir, permitir que possa haver! Todas as pessoas tão egoístas, mas eu estou aqui, sem nada que seja meu sem que tenha dela. Como seria possível tamanha forma de se dar? Cabível maneira de existir?

4.
No trigésimo dia sentiu... não se sabe o que. Era tanto saber que já amava, e amava só, que pensou ser a única criatura viva que se sufocava nesse mar que não conhecia, um mar que tem muito de solidão e um muito tanto de crueldade, se não se sabe se está fundo ou na beira, se o mar é um mar amarelo ou anil. Ou se ela também navegava, se poderia... Decidiu sair à rua, caminhar, ver gente. Mas é justo nesses dias que parecemos estar numa novela. Só encontramos casais, moças e velhinhos felizes, românticos. As mãos dadas num cúmplice dizer, que esta é a extensão do que sou, olhe: achei outro de mim, meu agora e de sempre. E parecem apontar-lhe com os olhos a sua exclusiva infelicidade. Irritou-se, voltou às pressas. Encheu um banho muito quente pra repensar. E teve pena de si mesmo.

5.
No quinto ano, seu sofrimento já era há muito uma parte fixa. Já nem chamava assim, com essa palavra boba e seca. Não tanto um sofrer, senão uma bala metálica introduzida no corpo por um disparo vagaroso. Convivia-se muito bem. Só ás vezes era preciso mudar de posição se a bala doía um pouco. Nas vezes em que o final de semana era ausente dela, digo, forçosamente ausente, se se tornava tão atordoante pensar os cortejos prováveis, os cafés que ela tomava que não eram pagos por ele. Mas não ligava, fingia.

6.
No sexto ano quis mexer com a introspecção repentinamente. Oferecer um bolo, convidá-la a sentar-se. Ela não o morderia. Talvez fosse influência daquela cena do filme, não se sabe. Nesse dia tudo nele era êxtase, tudo pulava numa alegria infantil, nostálgica. Ele começara a falar (falar, meu Deus!) sobre mais que o dia tedioso na empresa ou o clima. Arriscou-se a traduzir um pouco de como a beleza dela irradiava, sem mostrar-se um vil. Ela confessou sua surpresa com um sorriso isento de hostilidade. E tudo nele era música e uma dança natural. Em outros dias conversaram, cada vez mais sobre um e outro e menos sobre "o que" ou "como". Meses. Até ele sentir - algo que não pôde explicar - que a pontada aguda, aquela coisa misteriosa, que era uma incrível forma de se dar, aquele mar que sufocava cheio de palavras bobas e secas, tudo precisava ser dito. E com algum pesar (mãos trêmulas e coração diminuído) o fez, de voz quase sumida. Mas... mas? Mas ela não poderia navegar. (É, o Walter, sabe? Nosso colega, já tem algumas semanas, pois é.)

7.
Foi na banheira, essa coisa maldita e obscura que é a banheira, que os braços pendiam inamovíveis. No espelho ao lado a rachadura trincava do início ao fim, formava uma bola, olhando daqui parece uma rosa estraçalhada, o miolo é aquela mancha vermelha. Só os braços pendiam e gotejavam ainda, os braços pedintes, rogando um amor que nunca tiveram, um amor tão casto quanto pobre, tão mais puro quanto mais irrealizável, dentro daqueles braços duros de nunca ter havido mulher. E na banheira boiavam textos anônimos, cartas e cartas molhadas, papéis desmanchando-se aquosos, versos embebidos de sangue, todos ali, imersos naquele mar solitário (nem amarelo e muito menos anil) onde seu corpo, frio, inalcançável, perdia-se, afundava-se, cada vez mais, e mais. 


E. J. (14/V/10)


*Verso de "Um poema-canção de amor desesperado" (Vinicius de Moraes)

quinta-feira, 6 de maio de 2010

Breve Consolo aos encantados (prefácio)

- Porque a minha "Literatura" não partilha de nenhuma relevância ou brilho superior. Falar de si mesmo e alcançar o mundo é tarefa de gênios. Mas não tenho, como Nassar, uma horta para me ocupar (ignoro técnicas de plantio). Tenho essa coisa furtiva que a modernidade permitiu, por isso não paro, é só pausadamente que estou a tecer essa linha silenciosa que tu visitas de quando em vez, "meu igual, meu irmão".