sábado, 7 de março de 2009

Menina dos olhos


"Deviam os mortais gerar os filhos de outra maneira, e não existir o sexo feminino. E assim não haveria mal para os homens."

(fala de Jasão em "Medeia" - Eurípedes)


Quando nasci, a enfermeira loura pediu-me ao pai: "Eu cuido, doutor, não conto não, fico caladinha! Ah que graça de menina!". Sabia mal o doutor José, quando reproduzia a velha história do deslumbramento da loura, o que lho tinham feito com a pobre criança no tal hospital.
Sete e um, horário do nascimento, a loura enfermeira anotara. "Até que tá sem lua, será que chove?". O médico, indiferente ao comentário, pede-lhe o alicate. Porque sim, foi com alicate que invalidaram minhas cordas vocais, com alicate e injeções. Eu me lembro. Puxaram-me da barriga, arrancaram as entranhas e logo estava na sala do final do corredor. Cirurgia simples, pois! "Outra fêmea com voz? Jamais!"
A mãe não gritou na mesa do parto, sua mesma anestesia me deram pra enclausurar as pontas ácidas do alicate em minha garganta. Eu só chorei, mas me silenciaram. Arregacei os braços pro mundo, o mundo me deu silêncio.
Abri os olhinhos, feridos ficaram. Eu gritava porque tinha medo, quiseram abafar. Supliquei. Porque não os olhos? Eles doem, não minha voz! Mas a bocarra não se mexeu por trás do pano. Meus olhos dariam-me duzentos pares de lágrimas naquela noite. E dois mil pares pra diluírem as palavras pelo resto da vida. "Acordo lógico", pensou, "tiro-lhe a fala, mas não vês que tens um lindo par de citrinos?" Vai-se voz, ficam-se lágrimas. As meninas dos meus olhos...

Não te podes falar, mantenhas-te calada. Mal grado a teu dono se te serves primeiro, se te pores à mesa um passo antes que todos. certas coisas se separam por natureza. Veio Eva para servir, viera Adão para ordenar. Pois tu, diabo em forma de mulher, tens reprimido o falo que te nascerias, tens repartido o vértice das pernas para jorrar sangue impuro e luxúria. És toda um adorno de sedução para que caiam em desgraça todos os homens d'ouro. Por isso, nada mais justo. Cortem-lhe pois, ao nascer, os dois músculos responsavéis pelo diálogo, porque mulheres são dadas como cães, quem de natureza submissa não precisa articular palavra alguma. Sem murmúrios enfeitiçados, dormiremos nós em paz. Se, contudo, as fêmeas se puserem a gesticular por demasiados minutos, agarrem-nas pelos cabelos e as façam calar o teu silêncio. Quando teimosas, raro rebeladas, soquem-lhes as pálpebras, sendo de preferência pelos machos de sua estirpe, de maneira que imobilizem-nas por completo, pois toda cadela comporta-se quando da ausência de linguagem oral.

Encapuzaram-me com vários panos perfumados. Só os citrinos cintilavam arregalados. Primeiro pedaço de rua: a saída do hospital. Primeira aparição ao sol: meu único sorriso. Depois um carro muito branco e um talho de uma casa estranha. Chegaram-me. Uma babá novinha aparou-me nos braços finos. "Oi, princesa!" Não respondi. Muitas cores, vários colos, alguns dias.
Mamãe não sabe do meu padecimento? - O médico roubou meu choro! - Foi o que disse, mas ela sorria. Porque? Então gritei com o olhar, nenhum sinal. A babá desconfiou, nunca havia ouvido um ruído, mas ela tinha cuidados maiores que os meus. "Dona Bia que é Dona Bia nunca reclamou."
Os pais nunca ouviram meus soluços, mas também não perguntaram porque.

P.s.: Homenagem ao dia da mulher

Um comentário:

Ellen Joyce disse...
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