Doce Jurema,
Sucedeu-me que mal completos meus
primeiros dois meses cá onde estou, espatifei no sofá por puro tédio. (Sim, este sofá é a representação suprema de todo o tédio humano). Por isso recorro ao papel-e-caneta para alumbrar a minha companheira das mais torpes digressões.
Já te disse o quão desconfortável é tudo em
minha casa? A mistura extraordinária do maior número de variações decorativas
que uma mãe é capaz de fazer; as ondas constantes de poeira que adentram portas
e janelas; a secura que racha-nos narizes e bocas e o pior (sim, o pior!): a
ausência total de privacidade. Caso esquisito é que hoje, já consternada, estanquei
minha rabugice por tanto apelar minha sábia mãe: “se te derem limão, faça um
limoeiro”.
Atrevo-me a externar as causas de minha estadia ter-se tornado mais
suportável. Como havia dito, a privacidade em minha casa é um simples mito, não
existe de todo. Não há muros entre as casas e dividimos com a vizinha uma de
nossas paredes, de modo que tudo que lá se passa nos é audível e vice-versa
(este vice-versa é um tanto desinteressante, não?). Neste caso muito pouco
inteligente da arquitetura, não há, em verdade, bisbilhoteiros legítimos.
Excede-se a minha Mãe Maria (a empregada) quando estaca junto da porta lateral
da cozinha. “Tá de butuca, Mãe Maria?” Ela volta a si e finge bater o bolo. É
fato que a programação televisiva é deveras chata e a vizinha protagoniza
verdadeiros Casos de família muito mais instigantes. No mais, estamos isentos
de culpa. Temos ouvidos, ora! Se te contar a última, você nem poderá acreditar
(se não fossem estes preciosos ouvidos que a terra há de degustar). A trama é
cabeluda. A vizinha, de nome Marília, é separada do marido e tem duas filhas
quase crianças. Carminha, que não deve ter ainda caídos todos os dentes de
leite, e Jussara, a que todos chamam "a diaba", tem treze anos e dá indiscriminadamente aos guris da cidade. Sim, Jurema, não esteja boquiaberta, por estas bandas também se ouve Geni e o Zepelim. Cá entre nós, critério é fanfarrice. Imagino sua cara de "certa é ela" e as nossas gargalhadas de passarinhas bêbadas. O fato é que a mãe está a por os bofes para
fora de tanta raiva de Jussara, não é que a doidinha engravidou? Quase todos os
dias ouve-se a vizinha maldizer a criança e, logo em seguida, ameaçar escorraçar
a filha de casa. As irmãs se uniram contra o desatino da mãe, só conversam
entre si, confabulam, Carminha promete apadrinhar a sobrinha e diz que cuida,
fala em fuga, Jussara-maluca pensa em tirar, diz que odeia o pai ("aquele minino zé ninguém") e quer ser
sozinha, só ela e a irmã. Uma confusão!
Outro dia, chegando em casa, vejo Mãe
Maria gesticulando, quase apavorada, numa conversa de porta com Jussara. A menina
revirava os olhos esboçando indiferença. Mariazinha é mesmo abusada. Foi pedir
(pois é, quase implorar) para que Jussara não matasse o próprio filho, ouvi
coisas como “pobrezinho” e “santo Deus!”. Eu via a hora da "diaba" soltar uns
bons desaforos na cara da enxerida, mas Jussara, tão avoada, só bocejava.
Entrei sem palpites, seria demais. Depois de curto tempo, ela voltou
lacrimosa e fui perguntar o que havia acontecido. Ela disse que a menina era
sem coração de verdade, ao invés de ouvir o que aconselha o Nosso Pai, disse ao
final que Mãe Maria procurasse uma boa caceta (!!!). "Jesus seja louvado!". Mãe Maria e seu olho esbugalhado. Segurei meu riso com muita destreza. Difícil, Jurema, difícil! 'De geniosa a genial: uma história de Jussara.' pode ser um título de meu livro.
Todos aqui em casa estamos apreensivos na expectativa desta novela. Correm rumores de que o pai da criança - um meninote ajudante de mercado - quer raptar Jussara para que nenhuma desgraça seja feita. No desenrolar da trama, envio-lhe novidades quaisquer. Enfim, está justificado o meu apaziguamento? Tenho material suficiente para trabalhos antropológicos. Esteja bem, querida.
Todos aqui em casa estamos apreensivos na expectativa desta novela. Correm rumores de que o pai da criança - um meninote ajudante de mercado - quer raptar Jussara para que nenhuma desgraça seja feita. No desenrolar da trama, envio-lhe novidades quaisquer. Enfim, está justificado o meu apaziguamento? Tenho material suficiente para trabalhos antropológicos. Esteja bem, querida.
Saudades,
Ellenalva.