domingo, 16 de março de 2025

Uma vez, quis explicar a um homem o útero.

Eu estava ainda com o cheiro do meu sangue nas mãos, breves cólicas e a água em ponto de fervura. Pensei no útero como o segundo coração da mulher, uma sensação descendente me acompanhava por dentro, ainda que não fosse cachoeira ininterrupta, pequena queda d'água. A dor que se me desprende do útero e do coração é a mesma, e mais do que lava - pranteia, alveja e prepara. Quando você se movimenta, ela se dissipa, por isso dançamos. Por isso cobrimos o ventre com panos quentes e, como as nossas avós, não lavamos a cabeça à noite. Precisamos ficar reclusas, quietas com nosso pensamento, tomando chá.

Nosso útero pulsa e sangra e isto é tão poderoso quanto belo. Isso é um milagre.

Um dia, um homem me deu uma célula, uma única célula, e eu fiz dela uma criança viva inteira, criei-a com meu corpo, nas minhas cavernas, dando-lhe tudo de mim. Ela se alimentou da minha comida, ficou forte e sadia nadando em minhas águas. E quando chegou o seu tempo, eu rachei a minha terra em mil pedaços e pari, sozinha e com ela, o meu bebê.

Choquei meus ovos de paciência, fui mãe. 

Aquele que me deu a célula deixou-me num abismo.

Segurei nas mãos das mulheres para sair.

Por que quis explicar a um homem o útero?

Agora, água fervida, chá de ervas, bolsa quente, deixo que meu sangue desça, deixo que a corola rubra se abra, encontro as minhas amigas, as minhas irmãs de alma, temos crianças crescidas, estamos em terra firme, nunca mais, nunca mais à deriva, enlaço os braços das mulheres, as crianças brincam, e nós estamos tomando chá.




domingo, 2 de março de 2025

 É festa na minha carne, na carne da cidade. De repente olho pra cima na cara dos orixás que nem entendo, na cara dos orixás por debaixo das contas e não tenho medo. Não sinto mais medo da Salvador que tiraram de mim e eu recuperei. Voltei, minha linda e maltratada, minha suave amiga, nós já fomos pisadas por tantos anos, por esses homens. No entanto, há uma coisa em nós que não se coloniza, aquilo que faz tudo girar, deixa a gira girar, balanço os quadris, mostro a minha pele, me dê a sua mão, pois eles não podem mais nos levar nada, entende? Nós estamos juntas outra vez. Você alimenta o meu espírito no mar, daqui vejo as ondas trazidas pelo navio pirata, não existe nada igual nesse mundo, sabe? De repente olho pra cima, pela janela do carro, e vejo a verdade das árvores centenárias pelas quais sempre passei. Eu só precisava de um ângulo diferente, essa era a grande chave, aquelas árvores gigantescas, bifurcando-se céu acima e terra abaixo, com suas cortinas verdes dançarinas de vento, com sua pele de musgo, aquelas árvores já foram sementes obstinadas pelo sal da vida. Aquelas árvores sabem dizer sem nenhuma palavra, eu só precisava de um outro ângulo, talvez mais custoso de encontrar, leva tempo para enxergar a leveza. Estou aqui, minha cidade tardia, olhando pra cima, ouvindo os tambores também de dentro, sambando meus pés no seu chão, não quero me entorpecer tanto, é festa no meu corpo e eu quero sentir. Todas as cores e brilhos são espelhos d'alma. Visto a minha fantasia, de repente vivo a minha fantasia, uma sereia sagrada que aprendeu a cantar. Te amo, meu carnaval.

quarta-feira, 22 de janeiro de 2025